A tragédia da Rua das Flores
– O livro póstumo de Eça de Queiroz que fala de um tema tabu
Lisboa 1877
São mais de 447 páginas de um romance que nas palavras do próprio Eça de Queiroz, em uma carta, foi o melhor e mais interessante já escrito por ele. Exagero? Dizem os criticos literários que sim. Porque logo depois veio o romance Os Maias, este sim considerado uma obra-prima.
Fato é que A tragédia das Rua das Flores tem algumas particularidades, a começar pelo fato de que ficou como rascunho por mais de cem anos. Foram os descendentes do escritor que o publicaram em 1980 (foi escrito em 1877).
Outro detalhe é que Eça não chegou a finalizar a sua obra, como gostava de fazer, entregando um texto irretocável como se vê nos seus outros livros. Segundo o prefácio de João Medina, na edição do Livros do Brasil, “Eça não teve tempo de limar asperezas e imperfeições, eliminar repetições, concordar falhas de concordância sintática”, o que resultou em uma “escrita selvagem, espécie de esqueleto a espera de ser vestido com as carnes, os tendões, as dermes e os humores vitais que transformam rascunhos em obras-primas.”
No entanto, um rascunho de Eça de Queiroz, não é qualquer rascunho. Ali estão o estilo, a sua forma de escrever, absolutamente literária, profunda, em um texto também ele critico, sarcástico e irônico da sociedade da Lisboa Oitocentista. É uma história excelente, com final trágico.
Uma terceira particularidade é que o escritor cogitou vários títulos para o romance: O desastre da Travessa do Caldas; Os amores de um lindo moço; o Caso atroz de Genoveva ou, ainda, Genoveva.
Uma cortesã madura e um jovem apaixonado
A história contada por Eça é passional e envolve o enamoramento dos personagens principais – Vitor e Genoveva, que ao final do livro encontrarão os seus destinos sombrios.
Genoveva é uma jovem portuguesa que se casa cedo, mas abandona o marido para seguir um emigrante espanhol. Depois, faz a sua vida como cortesã: como existe até hoje, programas de luxo com quem pode pagar bem. Ela chega a se casar com um velho senador do III Império, M. Molineux, que morre deixando para ela apenas o sobrenome que adota, Madame Molineux.
“O patife do velho não tinha lhe deixado nada: tinha-se visto obrigada, depois da morte dele, a pôr no prego suas joias, tinha dívidas.
Genoveva volta à Lisboa, sua Terra Natal, acompanhada de uma governanta inglesa, Miss Sarah, e pronta a ganhar, naquela praça, dinheiro como sempre ganhou. Linda, loira, deslumbrante, experiente, envolve-se com Dâmaso, descrito como um rico asqueroso que compra a atenção da bela Genoveva, a essa altura mais francesa que portuguesa.
Mas tudo isso são negócios.
Genoveva, quarentona, se apaixona de verdade quando conhece Vitor, advogado formado em Coimbra, vinte e três anos, poeta, romântico, embora um personagem sem muito brilho (um burgues apático e ridículo, conforme descrito). Vivia com o tio na Rua São Francisco, pois tinha sido abandonado pela mãe quando tinha apenas dois meses.
Um tabu que só se vence com a morte
Genoveva e Vitor vivem o amor sensual e romântico, recheado de alguns buracos quando ela dedica (por força da profissão), sua atenção ao amante Dâmaso. Mas este é um problema pequeno diante do que está por vir.
La pelas últimas páginas, a história tem o seu desfecho quando Genoveva é informada que ela é ninguém menos que a mãe do rapaz – o filho recém nascido que ela deixou para viver uma vida livre, leve e solta mundo afora. A revelação, apresentada a Genoveva pelo tio de Vitor, Timóteo, irmão do ex-marido abandonado e já morto – acontece um dia antes da partida de Genoveva e Vitor para uma nova vida, longe de Lisboa.
Ao outro dia a partida para Paris era uma resolução fixa. Deviam partir em setembro: iriam por terra: demora-se-iam em Madrid quinze dias, parariam talvez nos Pirineus – Genoveva ria, duma alegria vibrante nervosa, com a ideia dos prazeres daquela viagem sentimental. Vitor não estava menos encantado. Os beijos de Genoveva e os seus braços tinham-lhe dissipado o resto do caráter e da vontade.
No fulcro do romance está, portanto, o tema incesto – involuntário, é fato, descrito pelo autor como não imoral mas cruel – mas sempre incesto, praticado entre mãe e filho. Um tabu que é considerado crime em alguns países como a Itália, por exemplo (no Brasil não é crime embora não seja culturalmente aceito).
O tabu do incesto se baseia em diversos fatores, incluindo a chamada degeneração biológica que pode advir da consanguinidade muito próxima. Ou seja, filhos de incestuosos podem nascer defeituosos, simbolicamente uma punição materializada pelo pecado praticado. Outro aspecto é o moral. Se o sexo é historicamente cercado de moralismos, imagine quando é praticado entre parentes próximos.
De fato, saber da relação sexual entre dois irmãos, da mãe com um filho, do pai com uma filha, soa chocante a qualquer um (incluindo a mim), porque o sentimento nessas relações deve estar além do prazer carnal.
Trata-se de um amor que deve vir sem paixões, fraterno, generoso e delicado, na maioria das vezes, incondicional. O incesto seria misturar coisas que não devem ser misturadas, está fora da ordem natural, é algo que não pode dar certo!
No caso de Genoveva, mesmo sendo esse incesto praticado involuntariamente, e por uma prostituta de luxo, é um fardo difícil de carregar.
Ao que tudo indica, abandonar o filho bebezinho não lhe causou uma culpa irremediável. Ganhar a vida tirando dinheiro de homens ricos por favores sexuais, muito menos. Mas saber-se amante do próprio filho, isto sim, lhe soa imperdoável, do ponto de vista do olhar do outro, mas sobretudo diante de si mesma. Como ela resolve esse conflito, está no livro para ser descoberto, portanto, leia!
Viaje na Lisboa dos Oitocentos, ah, uma delícia
Além do enredo trágico, interessante, com desfecho bombástico, este é um romance de leitura deliciosa para quem gosta de viajar pelos Oitocentos, como é o meu caso. Gosto da descrição dos costumes, da ópera, dos camarotes e binólucos, dos serões, ah…É também uma viagem a Lisboa antiga, que nos desperta para a vontade de conhecer o Chiado, a Rua São Bento, a Rua do Alecrim e a própria Rua das Flores (e todo o resto detalhadamente citado).
Depois, temos o texto de Eça, sempre muito inspirado e lúdico, um Eça que, apesar de Realista, descreve como poucos o estado romântico de uma pessoa apaixonada.
E Vitor, andando devagar, pensava nela: sentia agora um amor enchê-lo, que, condizendo com o lugar, tomava alguma coisa do vago da noite, e da solenidade do silêncio. Pensou como seria doce viver com ela no campo, nalguma aldeia afastada: nas noites de vento, fora, passaria rajadas frias, os cães da quinta ladrariam; e quem passasse na estrada voltaria olhares curiosos para a luz da casa deles, e pensando em família, amor, em interiores, suspirando, continuaria o seu caminho na noite desolada: porque para certos temperamentos – a inveja que provoca a felicidade é que lhes dá todo o sabor.