Lev Tolstoi e A morte de Ivan Ilitch
Semelhanças com A metamorfose?
Girando naquelas gôndolas com desconto, descobri, numa deliciosa livraria de Braga, em Portugal, uma novela de Tolstoi: A morte de Ivan Ilitch, uma edição muito atrativa da editora Leya, com tradução de António Pescada.
O autor russo conta a história da morte precoce, aos quarenta e cinco anos, do juiz desembargador Ivan Ilitch. Tolstoi trata, logo no primeiro capítulo, sobre aquilo de que fala o título do livro – os funerais de Ivan.
E aqui vem o primeiro golpe. Não me lembro de ter visto uma narrativa tão brilhante para descrever alguém que jaz num caixão.
Aliás, em toda a novela as descrições são um ponto alto, no queTolstoi usa e abusa do seu gênio para escrever do jeito que melhor lhe apetece, sem seguir convenções e sem maiores explicações – e, de uma forma absolutamente original.
Veja o trecho da novela, sob o ponto de vista do personagem Piotr Ivánovitch.
O morto jazia como sempre jazem os mortos, de um modo especialmente pesado, defunto, com os membros hirtos afundados no acolchoado da urna, a cabeça para sempre inclinada na almofada, e mostrando, como sempre mostram os mortos, a sua testa amarela como cera com entrada nas têmporas fundas e o nariz saliente, que parecia comprimir o lábio superior.
O autor segue a narrativa com uma abordagem subjetiva, na qual o morto, embora tão definitivamente defunto, praticamente interage com os vivos.
Tinha uma expressão que dizia que tudo aquilo que havia de fazer estava feito, e feito como devia ser. Além disso, nessa expressão havia ainda uma recriminação ou uma advertência aos vivos. Piotr Ivánovitch achou essa advertência despropositada ou, pelo menos, não lhe dizia respeito a ele.
A partir do segundo capítulo, o escritor esclarece ao leitor de quem se trata essa personagem. Contextualiza a infância, a carreira, o casamento aborrecido, revela o seu caráter para, finalmente, chegar ao penoso processo da doença.
Lendo essa magnífica obra de Tolstoi tive sensações parecidas com aquelas de quando li A metamorfose, de Kafka.
Que fique claro, são impressões subjetivas de leitora.
Os dois autores fazem parte de estilos literários diferentes, com Tolstoi apoiado no Realismo do século XIX e Kafka inserido na linguagem metafórica, uma das características do Realismo Fantástico das primeiras décadas do século XX.
A morte de Ivan Ilitch é de 1886, A metamorfose, de 1912. Há, nas duas obras, o mesmo tom pessimista e uma visão de mundo cruel e implacável. E não é só.
Em Kafka, a realidade é algo que se mostra de maneira estranha, mas ao mesmo tempo muito próxima de uma vida comum. De certo modo, ele é também realista, mas como se tivesse dado um passo a frente, oferecendo, em uma linguagem simbólica, nuances daquilo que não é visível – embora exista com muita força.
Já a narrativa de Tolstoi é realista, a vida como ela é, porém (ao menos nessa novela) não livre de subjetividades.
Por exemplo, Tolstoi deixa o leitor (e o doente) sem um diagnóstico preciso da doença que avança no seu personagem. Ivan Ilitch atravessa, impotente, dores terríveis sem que haja uma palavra clara sobre a tragédia que consome o seu corpo.
Mais de um médico o visita, alguns descritos como “famosos” ou “celebridades”. Sobre a visita de um deles, diz Tolstoi, quase como se brincasse ou ironizasse:
O médico disse: isto e mais aquilo indica que deve ter isto e aquilo; mas, se não se confirmar pela análise disto e daquilo, então é de supor que tenha isto e aquilo. Para Ivan Ilitch só uma questão era importante: a sua situação era perigosa ou não? O médico ignorou essa pergunta inadequada.
Ambas as obras são novelas, esse gênero literário que se localiza entre o conto e o romance. Os dois protagonistas encontram-se de mãos atadas para escapar de uma situação sem saída, ou labiríntica (palavra muito usada quando se cita a obra kafkiana).
Os protagonistas Ivan Ilitch e Gregor Samsa sofrem de uma solidão aguda, consequência de um evento específico, que muda o ritmo das suas rotinas e os aprisiona.
O primeiro porque adoeceu gravemente. O segundo porque virou uma barata. Os dois são obrigados a manterem-se imobilizados em seus quartos, feridos em seu orgulho, carentes e humilhados nas suas fragilidades.
As duas famílias reagem com certa atenção de início, para depois iniciar um processo lento e constante de indiferença – nos dois casos motivadas pela necessidade de tocar a vida para frente e, no instintivo egoísmo que parece ser próprio aos seres humanos (mesmo aqueles de bem) – livrar-se de algo que se transformou em um estorvo.
Escreve Tolstoi, sobre Ivan Ilitch:
Era impossível dizer como aquilo aconteceu no terceiro mês da doença de Ivan Ilitch, porque aconteceu aos poucos, imperceptivelmente, mas a mulher, a filha e o filho, os criados, os conhecidos, os médicos, e, principalmente, ele próprio, sabiam que todo o interesse que ele representava para os outros estava apenas em saber se iria finalmente deixar o seu lugar vago, se livraria os vivos do incômodo que representava a sua presença e se libertaria a si próprio dos seus sofrimentos.
E Kafka, sobre Gregor Samsa:
A limpeza do quarto procedia sempre à noite, não podia ser feita mais apressadamente. As paredes estavam cobertas de manchas de sujidade e, aqui e além, viam-se bolas de sujidade e de pó no soalho. A princípio, Gregório costumava colocar-se a um canto particularmente sujo, quando da chegada da irmã, como que a repreendê-la pelo fato. Podia ter passado ali semanas sem que ela fizesse fosse o que fosse para melhorar aquele estado de coisas; via a sujidade tão bem como ele; simplesmente, tinha decidido deixá-la tal como estava.
Escreve Tolstoi, em um dia de agonia de Ivan Ilitch:
Entrou a filha toda ataviada, com o corpo jovem desnudado, o corpo que no caso dele tanto o fazia sofrer. Mas ela expunha-o. Forte, saudável, visivelmente apaixonada e indignada com a doença, o sofrimento e a morte que perturbavam a sua felicidade.
Escreve Kafka, em uma fala de Grete, irmã de Gregor que, embora sofra pelo que diz não se exime de fazê-lo, sem rodeios.
— Temos que nos ver livres dele — repetiu Grete, explicitamente, ao pai, já que a mãe tossia tanto que não podia ouvi uma palavra. — Ele ainda será a causa da sua morte, estou mesmo a ver. Quando se tem de trabalhar tanto como todos nós, não se pode suportar, ainda por cima, este tormento constante em casa. Pelo menos, eu já não aguento mais. — E pôs-se a soluçar tão dolorosamente que as lágrimas caíam no rosto da mãe, a qual as enxugava mecanicamente.
E você, conhece essas duas novelas magistrais? Gosta? Percebe algo em comum?