Férias no manicômio
A mocinha da recepção levanta os olhos e a expressão muda, os olhos ficam maiores e mais acesos. Mesmo acostumada a loucos e nervosos de todos os tipos, era difícil ver alguém como Raquel, coberta de farinha, ovos e chocolate em pó da cabeça aos pés. Praticamente uma receita de bolo ambulante.
– Você vai tomar um banho, depois vou lhe dar um remedinho pra você descansar.
O tom maternal da enfermeira de meia idade acalma Raquel, que agora veste um uniforme folgado de algodão com emblema do Centro de Reabilitação Verdes Ares.
O remedinho é um comprimido pequeno mas que opera uma mágica. A vida passa como num filme lento em que revê imagens dos pais, da roça de tomate, das patroas, vê a si própria esfregando, passando, lavando, beijando Edenilson, tendo as filhas. Mergulha na paisagem de um quadro na parede, com um riachinho.
Adormece.
Desperta em um quarto limpo, com duas camas vazias. Dirige-se a um corredor. Um cheiro de comida aguça o paladar de Raquel. A senhora farta aparece.
– Ah, acordou. Tá melhor, querida?
– Sim – Raquel balbucia.
– Você dormiu mais de vinte e quatro horas. Agora come alguma coisa, depois o doutor vai falar com você – fala com voz clara e tom complacente.
Uma sopinha de frango com batata, pão e chá. Achou tudo uma delícia. Comeu também a sobremesa, um bolinho industrial doce e gostoso.
Enquanto Raquel come, a senhora farta conversa animada com as funcionárias sobre aumento de preços, compra de material escolar e coisas do tipo. O assunto era crítico, porque poderia levá-la a se lembrar da conta de água e demais problemas. Mas seu estado era de uma tranqüilidade ausente. Quando termina a refeição, levanta-se e pega o prato em que havia comido.
– Pode deixar aí que as meninas tiram, não se preocupe. Agora você escova os dentes, tem escova e pasta lá onde estão suas coisas. Se ajeita e vamos falar com o médico, mas fique bem tranquila, ele só vai querer conversar para saber por que você ficou nervosa, tá certo?
Raquel sorri, satisfeita. Atrás da mesinha na sala apertada o médico, um homem esguio, de cerca de quarenta anos.
– Olá Raquel, me dê só um minutinho e já falamos.
Raquel tem tempo de observá-lo enquanto ele anota coisas em um bloquinho. As mãos limpas de dedos longos e unhas aparadas, as têmporas grisalhas, um jeito agradável e um perfume suave que invade o ambiente. Veste um jaleco branco com um nome bordado no bolso direito. Encanta-se com essa primeira imagem do doutor, na sua visão, um anjo encarnado.
– Ok, terminei – ele diz e encara Raquel.
– Então, me conte o que aconteceu com você, por que ficou tão nervosa?
A voz de Raquel sai com aquela objetividade das pessoas simples.
– Então, doutor, tô cheia de pobrema. Sou mãe de duas crianças, uma o pai morreu, a outra é sem pai mesmo, eu que sustento as duas. Trabalho de diarista, sou da roça, mas aqui minha tia me ajuda, sempre me ajudou, assim, ajuda não com dinheiro que ela também não pode.
– Entendo, você vive sobre pressão. Mas teve alguma coisa naquele dia que te fez ficar desorientada?
– Então, teve a receita do bolo. Na véspera eu tinha recebido a conta de água que veio mais de duzentos reais, eu pago no máximo trinta reais. E já tô em dificuldade, muita conta para pagar. Aquilo ficou na minha cabeça. Quando eu cheguei pra fazer a diária a minha patroa tinha deixado a receita de um bolo. Sempre tem muito serviço, mas esse dia tinha mais esse. Aí comecei a fazer, mas me deu vontade de quebrar tudo dentro de casa. Vi até rato passando, sendo que o apartamento é limpo de tudo, vixi doutor, muita confusão.
– Entendi perfeitamente, Raquel. Você já vinha tendo muita pressão e de repente veio esse problema da conta e da receita do bolo que funcionaram como um gatilho para o surto.
Raquel não entendeu o elo entre surto e gatilho, mas o sentido era esse.
– Raquel, deixa ver – olhava uma pequena ficha – Você está com 27 anos, já tinha tido algum sintoma parecido, já tinha sentido essa desorientação antes?
– Não, doutor, nunca. Sempre trabalhei, foi só dessa vez mesmo.
– Então, Raquel, você teve um esgotamento mental. Agora precisa descansar, ainda não vai poder voltar pra casa. Fica aqui por mais algum tempo, pode receber visita uma vez por semana. Você vai ser medicada e depois volta tranquila pra sua vida, ok? Quando você estiver perto de sair tem o pessoal da assistência social que vai te auxiliar, vai ajudar você a reclamar na companhia a conta de água que veio a mais, renegociar suas dívidas. Enquanto você estiver aqui também será entregue na sua casa uma cesta básica para ajudar seus familiares. Tá bom, assim?
Se estava bom? Era a primeira vez na vida que desfrutava comida feita por outras pessoas, roupa de cama lavada e passada, televisão à tarde, consulta particular com esse ser onírico e tempo livre. Além do luxo de repassar a sua trajetória até ali.
Uma das piores lembranças é do dia em que quebrou um relógio do pai. O velho, bêbado, a espancou com um cinto. Acariciando os hematomas pelo corpo, teve clareza que sua felicidade estava longe dali. Quando fez vinte anos reuniu as poucas peças de roupa e um perfume doce e seguiu para a casa de uma tia, na periferia de Curitiba.
Casa minúscula, Raquel dormia na sala até que conseguisse ter seu próprio canto. A tia Geni, diarista de larga experiência, tinha uma espécie de lista de espera. Não demorou e Raquel, baixinha e troncuda como uma ginasta, iniciava uma nova fase na vida. Havia, porém, dificuldade em entender as patroas, que destilava exigências, desconfianças e desprezo. Raquel desabafava apontando fraquezas, defeitos físicos e vícios das bruxas.
–Tão boa, mas não para de fumar, começa já quando acorda – vingava-se.
A primeira experiência foi na casa de uma aposentada, de pele muito branca, flácida e enrugada, que se orgulhava de vir de uma família nobre de Portugal, com muitos escravos negros. Aquela herança maldita fazia parte do inconsciente dessa mulher, que agia com todos os preconceitos dos antepassados. Assim, empregada doméstica era sempre chamada de Maria, como o nome que se dá a um objeto qualquer.
– Maria. Por que ela muda meu nome? – reclamava baixinho e, num tom mais alto:
– Me chamo Raquel, dona Terezinha.
– Maria é melhor para eu lembrar – justificava a patroa.
Depois vinham as ordens ásperas, nenhum reconhecimento para o esforço em ser quase perfeita na limpeza da casa.
Odiava os pés da velha, incrivelmente deformados, com joanetes tão graves que inclinavam os dedos como se apontassem para o inferno.
– De que adianta ter tanto sapato fino? – vociferava, enquanto tirava o pó de mais de cinquenta pares de calçados atulhados no closet. Alimentava secretamente vinganças terríveis como cuspir na comida, porém, cheia de pudores de campesina, deixava as ameaças na fantasia.
Raquel contou o que se passava na casa da velha e a tia foi direta:
– Cai fora, têm outras esperando.
Um telefonema e meio depois e Raquel tinha uma nova patroa.
– Mas não tem que avisar a tal da dona Terezinha?
– Não. Você não vai mais e pronto, deixa ligar a vontade e não atende. É assim que a gente faz – ensinava.
Mas o padrão das patroas injustas estava estabelecido. A próxima da lista queria Raquel em tempo integral, de segunda a sábado.
– Se você for bem a gente paga o salário mínimo e assina carteira.
Com essa promessa e um rádio na cozinha Raquel estava feliz. Já no primeiro mês comprou umas coisinhas, um liquidificador para a tia, e enviou uns trocados para a família na roça. Dois meses depois, porém, a patroa, casada com um ilustre advogado e dois filhos, mudou-se de um apartamento pequeno de dois quartos para uma casa enorme, de três pavimentos. O trabalho triplicou.
– Pra que a pessoa ter cinco banheiros? – Pensava, enquanto ensaboava o mármore da suíte máster.
– Bastava dois, e o pior que ela já disse que tem que lavar todos.
– Vai fazendo aos poucos – dizia a patroa, jovem, bem cuidada e bela pelas longas horas de sono. Quando acordava tarde e sem pressa, bocejando e mexendo no celular, Raquel já tinha lavado dois banheiros, limpado a casa, passado a roupa e ajudava a cozinheira no almoço. Dois meses e nada de aumento. A tia foi clara:
– Ela vai te enrolar até onde puder. Cai fora. Tem mais gente esperando. Volta pra diária que é melhor pra você.
Raquel anunciou a saída. Alegou dores nas costas e exaustão, além da remuneração baixa. A bela se limitou a dizer.
– Tem alguma colega para indicar? De confiança…
Raquel, que lia e escrevia com dificuldade, não entendia a luta de classes. Marx, Engels, Che Guevara, a exploração do homem pelo homem eram conceitos que ficariam para uma próxima encarnação. Mas, a essa altura, já entendia que existiam ricos, pobres, arremediados como a sua tia, que tinha casa própria, e seu Miguel, dono de um pequeno negócio no bairro, mas que de alguma forma continuava pobre – e pessoas nem ricas nem pobres, que liam livros, falavam de viagens e faziam dieta de suco verde.
A próxima experiência seria na casa de um homem de meia idade, funcionário público, solteiro e sovina. Não deixava nada para ela comer no almoço, na geladeira apenas gelo e água. Sejamos justos, deixava sim, um macarrão instantâneo, que Raquel, acostumada a feijão com banha no sítio, comia contrariada e sentia palpitações o resto da tarde, talvez pela grande quantidade de sal do tempero.
– Na roça a gente come melhor que essa porcaria – comparava.
Um dia ele apareceu com uma sacola de roupa, coisa até boa, uns casacos escuros e pesados, mas ela descobriu que tinha sido de uma tia que morreu depois da agonia de uma metástase. Misericórdia. Queixou-se à tia que conferiu um caderno de notas e rapidamente encontrou a próxima da lista.
Agora, ao que parecia, Raquel tinha uma proposta mais decente, que daria um alento na sua curta e exaustiva carreira. O trabalho era na casa de uma senhora de cinqüenta e nove anos, juíza, longe de ser carinhosa, mas uma pessoa justa. Diária duas vezes por semana. Havia ali uma limpeza natural. A roupa era lavada quase toda em lavanderia, belos tailleur de Fórum, e uma coleção de perfumes importados que encantava Raquel. Cheirava um a um, sentindo-se transportar para mundos incríveis e desconhecidos.
Para almoçar tinha lasanha comprada pronta e refri, era gostoso. De resto, quando chegava para trabalhar a patroa já havia saído. Que paz naquele lugar. Apenas o barulho do rádio que Raquel escutava músicas sertanejas e longos relatos de dramas pessoais, lidos com trilha de suspense ao fundo pelo locutor num programa intitulado Vida, somente vida. Ela adorava. O trabalho rendia e cedo já estava pronta para pegar os ônibus que a levaria de volta ao subúrbio longínquo. Até que…
– Raquel, vai chegar um senhor pra ficar aqui em casa por um tempo. É italiano, mas fala alguma coisa de português.
– É parente da senhora?
– Não, nós temos um relacionamento de cinco anos, mas ele fica lá e eu cá.
Raquel entendeu, era um namorado que morava longe. O senhor Nicola era simpático, sorridente e falava um português enrolado, que para ela era o idioma dele.
– A senhora precisa ensinar brasileiro a ele – recomendava à patroa, que ria divertida.
A doutora costumava ficar pelo menos um turno fora de casa. Quando Raquel chegava, o senhor Nicola já estava de pé, tomando café numa xicrinha e fumando. Menina da roça, evitava olhá-lo nos olhos. Mas Nicola sempre procurava conversa. Raquel entendia com dificuldade e ele repetia devagar.
– Sei una bella ragazza.
Raquel entendia bela, bonita. E sorria.
Mas as simpatias do senhor Nicola iam cada vez mais além. Estava sempre sorrindo de forma suspeita e um dia, quando saiu para comprar cigarro, voltou com um chocolate.
– Un piccolo pensiero per te – disse o velho. Ela sentia que aquilo estava ultrapassando a barreira da gentileza e contou à tia.
– Tá dando em cima de você, mas nada de contar à patroa, elas sempre pensam que a culpa é da gente. Faz de conta que não tá entendendo.
Um dia, porém, o caldo entornou. Raquel passava roupa na área de serviço. Nicola fumou, puxou conversa. Ela respondeu por monossílabos e, ato contínuo, aproveitando-se que esticava uma camisa, ele cobriu sua mão em um carinho suave. Ela puxou a mão bruscamente. Ele a olhava nos olhos e o convite era explícito.
– Tudo bene, fica tranquila, gosto de você, sei una brava persona – respondeu Nicola, levantando as duas mãos num gesto que indicava ok, não está mais aqui quem tentou.
Na próxima diária ele recuou. Nem parecia o mesmo, compenetrado e sério no computador do escritório. Mas, uma manhã, quando lavava a louça, sentiu que o italiano a abraçava por trás, enterrando o nariz no seu pescoço.
– Você é una delizia – disse o velho em um sussurro rouco.
Raquel ficou paralisada e ele continuou.
– Te posso dar o que você quiser, tesoro mio.
A sorte é que o interfone tocou, ela saiu em disparada e ele foi fumar. O clima tinha acabado. Raquel contou para a tia, que sentenciou.
– Cai fora, esse velho vai te dar problema.
Com muitos percalços no meio do caminho, os anos se passaram. Agora ela fazia de três a quatro diárias na semana. Com o dinheiro comprou uma casinha numa invasão por um valor irrisório. Agora já sabia quando e como descartar uma patroa e passar à próxima sem aviso prévio. Sem falar que podia comprar roupa nova e bijuteria, freqüentava o salãozinho do bairro, unha, progressiva, mechas douradas. A diversão era numa lanchonete do bairro, lugar animado em que se bebia, comia e paquerava.
Com Edenilson, Raquel descobriu os prazeres. Ele passou a frequentar a casa dela, até mudar-se de vez. Não demorou e estava grávida. Nesse meio tempo descobriu que ele pagava pensão a mais duas mulheres, sendo que uma delas vivia ligando e insultando-a.
– Vagabunda, gorda horrorosa, deixa o homem dos outros.
Edenilson não era lá essas coisas. Fim de semana gostava de beber cerveja até cair e roncar no sofá de Raquel. Fora a carne do churrasco e a cerveja, que distribuía generosamente aos amigos, não comparecia nas despesas. A barriga de Raquel crescia à medida que ela descobria os defeitos daquele que se revelava um verdadeiro traste. Pediu conselhos à tia.
– Manda esse sujeito embora, você tem seu filho e pronto.
Algum tempo depois conheceu Cléber, (o Crebe, como ela o chamava). Esse melhor, trabalhava como porteiro e fazia planos de casar. Numa manhã friorenta, porém, enquanto se equilibrava para limpar os vidros, Raquel recebeu a notícia. Cleber tinha sido atropelado, estava morto. Em meio à dor, descobriu que estava grávida do segundo filho. Raquel tinha agora dois filhos para criar e uma dívida, contraída com os funerais imprevistos do noivo Cléber – uma imposição da família dele que ela, do alto de seu orgulho camponês, fez questão de honrar.
Empolgada com o ganho diário, Raquel tinha mobiliado a casa, pagando em mensalidades que lhe extorquia os ganhos. Depois, eram duas crianças e as despesas todas por sua conta. Por mais que trabalhasse, estava sempre devedora de alguma coisa. Começou a ficar triste e cabisbaixa. Sem falar que, com o tempo, aquela pressão das patroas começou a pesar.
– Você esqueceu de limpar os sapatos semana passada.
– Raquel, está faltando uma taça de vinho, por acaso quebrou na hora de lavar?
– Raquel, sumiu uma blusa minha de seda pura. Procura no armário, tem que achar.
E haja trabalho! Pilhas de roupa para passar, algo como quinze calças jeans, camisas masculinas sociais com mil preguinhas, Raquel estava à flor da pele. O que a invadia não era aquela tristeza de quando se perde as forças, mas uma depressão ansiosa, dessas que impedem o bom sono e o apetite. A gota d’água veio – que se desculpe o trocadilho – de uma conta de água. Duzentos e oitenta e cinco reais e treze centavos a serem pagos em data próxima.
– Minha nossa senhora – gritou – como é que foi isso? –Rapidamente pensou no vizinho, que passava o dia fumando maconha junto com amigos. Teria feito um gato, só podia ser. Mas, como acusá-lo? A tia já a tinha alertado que se tratava de um traficante, gente perigosa. Poderia reclamar na companhia, mas sabia que isso demandava tempo e não sabia por onde começar. A cabeça girava e não encontrava solução. Via-se com a água cortada e mais um problema na vida.
Na manhã seguinte acordou cedo para pegar os três ônibus que a levariam ao trabalho. Na estação, só conseguiu comer metade de uma coxinha com refrigerante. A cabeça girava. Vinha à mente as surras que ganhou do pai, em dona Terezinha que a chamava de Maria, da morte daquele que seria um marido justo e outros pensamentos que a atormentavam até culminar na lembrança das dívidas e da conta de água.
De repente, a vida parecia ter virado de cabeça para baixo. A diária aquele dia era na casa de uma dentista que ficava fora o dia inteiro e deixava bilhetinhos para Raquel com orientação do serviço do dia. Desta vez havia um pedido para preparar um bolo para um café com as amigas.
– Não podia passar na padaria e comprar? – perguntava-se Raquel diante daquele trabalho extra.
Quando ajeitava a cama, sentiu palpitações. Passou ao banheiro, reuniu o material de limpeza. Decide por fazer logo o bolo – enquanto assa lava o banheiro – assim já cumpre a tarefa chata. Na cozinha, separa os ingredientes da receita escrita em letras garrafais pela patroa, que temia Raquel não conseguir ler. Farinha de trigo, ovos, leite, uma xícara de óleo, café, café em bolo? E chocolate, manteiga, enfim, uma receita.
Separar a gema sem misturar com a clara senão no final não fica em neve – dizia a primeira parte. Raquel tremia. Não tinha prática em fazer bolo e a primeira gema foi separada com dificuldade. No segundo ovo, a taquicardia aumentou.
Sentiu um suor frio, calor, se abanou com uma das mãos. Os movimentos eram instáveis e a gema misturou-se com a clara. Raquel sentiu o ritmo do coração aumentar. Pensou primeiro que a patroa a odiava e queria dificultar o trabalho por isso impunha aquele desafio. Depois, que sua casa poderia estar sendo roubada naquele exato momento, que levariam todas as suas coisas, como aconteceu a uma vizinha. Pensou na possibilidade de Edenilson fazer isso por vingança, já que vinha insistindo para voltar e só ouvia negativas. O pensamento evolui:
– E se ele estiver pensando em botar fogo na minha casa?
Julga ter visto um rato passar na sala. Talvez uma barata. Depois, é como se alguém a chamasse. Ouve vozes sussurradas e insistentes. Está no auge do nervosismo, o coração disparado. Volta à mesa da receita e, num gesto insano, mistura o pacote inteiro de farinha, esbagaça os ovos na mão. Derrama o óleo inteiro na massa e começa a bater um bolo maluco. A farinha misturada ao ovo e ao chocolate em pó faz uma grande sujeira. Raquel não conhece a literatura da psiquiatria que a diagnosticaria com um surto psicótico, quando uma pessoa de forma súbita é acometida de delírios, alucinações e mania de perseguição. Mas, num rasgo de lucidez, reconhece que não está bem e liga para o celular da tia, que chama o SAMU.
Quando Raquel abre a porta, um dos funcionários do SAMU dá um passo atrás.
– Jesus – exclama o jovem.
Uma espécie de chefe da equipe anota alguma coisa num papel. Os dois se aproximam de Raquel, que se deixa conduzir.
– Mas ela vai assim? – pergunta o mais novo.
– O procedimento é esse, lá eles dão um jeito.
Raquel na ambulância, olhar parado, em transe. Os que passam pela rua olham a cena curiosa. Uma semana depois a tia vem visitá-la. As crianças estavam na sua casa e continuava indo a escola normalmente.
– Tia Geni, muito obrigada por tudo. Quando eu tiver boa, lhe pago.
– Depois a gente vê isso, agora você trate de ficar boa logo que as patroas não param de ligar.
– E dona Marcela? – referia-se à dentista – Ficou tudo uma zona aquele dia.
– Fui lá arrumar a bagunça e tô indo enquanto você não volta. Vou lhe arranjar mais umas duas diárias, assim você paga o que deve e pronto.
– Deus abençoe, tia.
– E como é aqui?
– Bom demais, Deus o livre.
Depois disso começou a perceber que havia pacientes como ela sendo mandadas para casa. Antes passavam pelo médico que lhes dava a devida alta e uma autorização para deixar o local. Raquel simplesmente não queria ir embora e abrir mão das primeiras férias da sua vida.
Um dia, ouviu nos corredores uma conversa das funcionárias.
– Isso aqui recebe recursos do SUS. Não pode manter gente que já está bem porque têm outros para entrar.
– Mas e aquela lá que queria se matar? Está aqui já há quase três meses.
– Pois é, mas ela está ajudando na contenção. Aí sim, se fizer trabalho voluntário pode ficar mais tempo.
Guardou bem aquelas palavras. “Trabalho voluntário”, “contenção”. Indagou com jeitinho aqui e ali e descobriu que pacientes da Ala C tinham doenças mais graves e às vezes precisava de contenção física, um trabalho feito corpo a corpo, sem a necessidade de outros meios mais severos, como a camisa de força, por exemplo.
Raquel não compreendeu a fundo o conceito mas entendeu o fundamental. Merecia aproveitar a comida gostosa e servida na hora, com limonada e gelatina de sobremesa. As horas de ócio em que ficava no pátio florido observando as formigas, as nuvens, descobrindo imagens como um carneiro, uma galinha, um porco com filhotinhos que viravam de ponta cabeça.
A compleição robusta a ajudou a ser aceita como auxiliar voluntária de contenção. Assinou um papel e passou por um curso breve. Raquel teve dificuldade em entender a parte teórica, e pensava em outras coisas enquanto um funcionário magrinho explicava, muito compenetrado, conduta da psiquiatria e outros conceitos. Concentrava sua atenção na aula prática, quando treinava “os mecanismos mecânicos para restringir a movimentação do paciente quando este oferece risco para si ou para terceiros”, e sobre como “abordar o paciente com manifestação de comportamento agressivo com técnicas de comunicação clara, firme, transmitindo o desejo de ajudá-lo, estimulando-o a falar sobre seus sentimentos, tentando acalmá-los”.
Na prática, a contenção não era mais que chegar ao máximo de abraçar com vontade aqueles mais nervosos ou descontrolados, sem, no entanto, machucar ninguém. Na estréia teve que “conter” uma senhora magra e alta, de rosto chupado e cabelos desgrenhados, com uma tinta gasta e raiz branca. A mulher começou cantando afinada: Não sei por que, esse amor existiu entre nós, agora só resta esquecer. Parecia contente, mas evoluiu para um choro nervoso e gritos. O chefe do setor orientou Raquel a ficar atenta.
– Ela gosta de jogar pedra.
Dito e feito. A mulher abaixou e começou a lançar pedras em direção a vidraça. Raquel entrou em ação. Segurou-lhe as duas mãos com firmeza.
– Procure se acalmar. Você não deve jogar pedras no vidro, nem nas pessoas. Solta, vamos, solta agora essa pedra. Vou lhe ajudar.
Com um olhar vazio a mulher agarrava a última pedra que conseguiu pegar.
– Você é uma vaca gorda. Também quer me matar, é?
Raquel lembrou-se do curso, não podia aceitar provocação, ali estava uma pessoa doente.
– Vamos dar uma volta vou lhe mostrar um gatinho que apareceu aqui ontem, é lindo.
A mulher milagrosamente soltou a pedra.
– Eu gosto de gato, eu tinha um cachorrinho, mas botaram fogo em tudo, coitadinho morreu queimado, latindo… – falou, entre lágrimas.
– Esquece isso, vamos achar outro, acho que ele vai gostar de você. O gatinho é lindo, com olho azul.
Raquel se enturmava com todos, desde pacientes em depressão, que passavam longos períodos assistindo televisão, até as funcionárias, a quem prestava pequenos favores. Cerca de um mês depois, as filhas vieram visitá-la num domingo.
– Mãe, quando você volta pra casa? – perguntou e menorzinha, com uma tiara de plástico cor de rosa. Raquel olhou para a tia, consternada.
– Você já tá boa, tá na hora de sair daqui – Disse a sempre precisa tia Geni.
– Amanhã vou falar com o médico. Se ele liberar eu já volto, já.
A menina a abraçou com força e alegria. Estava dito.
As funcionárias lamentaram a decisão, já que poucas pacientes tinham demonstrado tamanha colaboração como Raquel. Com o mesmo olhar e mãos serenas, o médico autorizou a alta.
– Boa sorte e procure ficar tranquila. Não tem medicação, não, você já pode seguir sua vida normal.
Raquel deixou o local na manhã seguinte com uma cartela de vales transporte. Confiante, caminhou até a saída. Por um momento, hesitou. Voltou. Dirigiu-se à recepcionista.
– Você tem um cartãozinho aqui da clínica?
Texto: June Meireles
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