Eça de Queiroz em A Relíquia – Crítica ácida e diversão garantida

Eça de Queiroz em A Relíquia

Crítica ácida e diversão garantida

Foto Eça de Queiroz
sottotitolo

Se você é leitor do escritor português Eça de Queiroz – e também se não o é – recomendo vivamente o romance A Relíquia (Editora José Olympio).

Trata-se de uma obra do gênero realista, publicada em 1887, na cidade do Porto, em Portugal. Quem narra a história é o protagonista, ou seja, é um relato em primeira pessoa do personagem Teodorico Raposo, o Raposão.

Diga-se de passagem que o sobrenome Raposo pontua muito bem a personalidade do nosso herói, na verdade, um malandro bem-nascido e bem-criado.

Embora seja um mentiroso contumaz, Raposão não mente ao leitor. Desde o início, ele fala sem rodeios, com detalhes sórdidos, da forma como age e porquê

.

Para não dar spoiller, resumimos assim: Teodorico é um jovem que fica órfão e uma tia muito rica se encarrega de sua educação. A tia, porém, é uma católica fanática, equivocada na sua fé. Aproveitando-se desse fato, Raposão a engana, fazendo-se passar por um jovem católico tão beato quanto ela.

E assim leva uma vida dupla. Diante da tia e dos que a cercam, incluindo um padre, é um rapaz muito correto, responsável e devoto. Às escondidas, é um bom vivant que desfruta uma vida mundana, cheia de doces e picantes pecados.

A gestão dessa vida de mão dupla não é fácil. Raposão, no entanto, se empenha porque está de olho na gorda herança da tia que, a depender, pode deixar tudo para a igreja.

Cheia de achaques de solteirona, a tia, que no bom humor criativo de Eça se chama Maria do Patrocínio, ou Titi, é insuportavelmente avarenta e exigente com a conduta do sobrinho – embora isso não seja suficiente para escapar dos ardis de Raposão.

Louco para ampliar seu raio de ação, ele tenta convencer a tia que deve ir a Paris, mas é demovido por ela, que considera a capital francesa muito afeita aos prazeres da carne. Ele então a convence a financiar uma viagem à Terra Santa, trazendo de lá nada menos que a coroa de espinhos que esteve na cabeça do Cristo. Esta é a relíquia.

Coroa falsa, evidentemente. E paramos por aqui porque senão contamos o melhor dessa história.

Importante saber que esse livro se encontra na mesma fase dos romances O crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, ambos de Eça de Queiroz. Em comum, os três romances trazem uma severa crítica à igreja católica, ao materialismo burguês, e ao comportamento hipócrita e falso da sociedade da época.

O que gostaria de destacar como impressão pessoal nessa obra, porém, é a forte dose de humor impressa na narrativa – ao ponto de arrancar risadas em muitas passagens.

Senão vejamos esse trecho de diálogo entre Titi, a tia, e Raposão.

Está bom, se queres, volta hoje a São Carlos… E lá quando te apetecer, não te acanhes, tens licença, podes ir gozar um bocado de música… Agora que estás um homem, e que parece que tens propósito, não me importa que fiques fora, até as onze ou onze e meia…Em todo caso a essa hora quero estar já de porta fechada, e tudo pronto, para começarmos o terço.

Lá o terço, Titi, lá o meu querido terço não perdia eu, nem pelo maior divertimento… Nem que el-rei me convidasse para um chazinho no paço!

Corri, delirante a enfiar a casaca. E este foi o começo dessa anelada liberdade que eu conquistara laboriosamente, vergando o espinhaço diante da Titi, macerando o peito diante de Jesus! Liberdade bem-vinda, agora que Eleutério (…) deixara Adélia só, solta, bela, mais jovial, mais fogosa!

E aqui não se trata de comédia. Mas de uma descrição tão crítica da realidade que o trágico toma ares de comicidade e com isso ganha uma leveza que torna a leitura interessante e divertida. Mesmo em trechos onde não se ri, a ironia está presente, e é tão bem dosada, que o resultado é puro prazer.

Além disso, para melhor a persuadir “da minha indiferença por saias”, coloquei um dia, no soalho do corredor, como perdida uma carta com selo – certo que a religiosa d. Patrocínio, minha senhora e tia, a abriria logo, vorazmente. E abriu, e gostou. Era escrita por mim a condiscípulo de Arraiolos: e dizia, em letra nobre, estas coisas edificantes: “Saberás que fiquei de mal com o Simões, o de filosofia, por ele me ter convidado a ir a uma casa desonesta. Não admito dessa ofensas. Tu lembras-te bem como já em Coimbra eu detestava tais relaxações.

A Titi leu, a Titi gostou. E agora eu vestia a minha casaca, dizia-lhe que ia ouvir a Norma, beijava com unção os ossos dos seus dedos; e corria, ao largo dos Caídos, à alcova da Adélia, a afundar-me perdidamente nas beatitudes do pecado.

A neurociência nos indica que inteligência e humor andam juntas. O que não quer dizer que um hábil contador de piadas possa ser necessariamente inteligente. A sagacidade a que refere a ciência depende de conhecimento profundo da cultura, de uma ampla gama de informações, senso de observação e sensibilidade. Qualidades que não faltam ao nosso inspirado Eça.

Com essa matéria-prima, aliada ao grande talento literário do escritor, temos resultados como A Relíquia: um humor construído a partir de uma visão profunda do mundo e do comportamento humano – valendo-se do exagero, da hipérbole, do óbvio e do absurdo para proporcionar uma leitura que entretém e diverte, quando nos fala de coisas sérias.

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