Call center

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Fazia já alguns meses que não dormia bem. O sono vinha pesado, com sonhos que não se lembrava, mas que sabia não serem leves. Muitas vezes acordava de madrugada e tinha impressão de ver no breu do quarto figuras enevoadas que anunciavam tragédias. Não sabia bem se falavam sobre um acidente, uma doença…tudo muito difuso, uma emoção aflitiva. Fato é que naquelas mensagens havia a certeza de que algo definitivo estava por acontecer.

Até que surgia o dia, as coisas, a vida para dar conta. Ao trabalho se deve ir, não importa se dormiu bem ou mal. Uma jornada inteira dentro do escritório sem janelas, o ar-condicionado frio no limite porque o chefe é acalorado.

Operadora de call center. O fone no ouvido, os insultos diários do outro lado da linha, as cantadas de pervertidos que não tem nada a fazer na vida a não ser dar vazão aos seus instintos primários, as eternas reclamações de clientes, gente infeliz, nervosa e frustrada. Nada nessa empresa funcionava bem, ela e mais algumas colegas eram treinadas para enrolar, para impedir ao máximo que esses clientes insuportáveis entrassem com uma ação na justiça cobrando milhões.

Lidava diariamente e sem sossego com as demandas dos outros, se esforçando para resolver questões que não eram suas, que não lhe diziam respeito, que não lhe interessavam. E assim terminava a jornada de trabalho, a mente exausta e uma sensação de oco, de tempo perdido.

Quando vinha a noite, em vez do repouso, insônia. Finalmente adormecia, mas parecia que continuava acordada porque enxergava as figuras enevoadas pairando no escuro do quarto. Poderiam ser anjos protetores, mas não. Os espectros eram feitos de ameaças veladas, como se algo ou alguém a odiasse no invisível da existência. Assim o dia começava sempre com olheiras, sono, indisposição e descontentamento. Pensava sempre em ligar no trabalho e dizer.

“Dormi mal, não tenho vontade de ir hoje”.

Mas quem tem coragem de enfrentar assim o escritório? Essas são subjetividades que não justificam uma ausência. Para faltar é preciso inventar uma desculpa valorosa, tipo, morreu tal parente, quebrei a perna, cai da escada, estou com uma diarreia forte, estou no pronto socorro com uma crise nos rins.

Se tudo der certo, é preciso não esquecer o atestado senão o dia é cortado, a depender, também o descanso remunerado. Tinha contas atrasadas esperando o salário minguado, ninguém podia se dar ao luxo de algo do gênero. Além de que tudo isso não pode se repetir num curto espaço de tempo, funcionário pouco produtivo arrisca demissão, é o primário na hora de um corte para ajustar as contas da empresa.

Antes de ir ao escritório, famigerado escritório, começava o dia sempre com uma ducha, a água quentinha do chuveiro caindo no corpo como uma trégua, um consolo. Mas, naquela manhã, bastou passar o sabão líquido, aroma químico de gardênia, que começou a pingar as gotas de sangue.

No começo, somente gotas.

Mas o que pode ser isso?

Problema na tubulação, tubo furado, prédio velho caindo aos pedaços.

Abriu mais um pouco o fluxo da água, quis deixar aquela ferrugem escoar dos canos oxidados.

Mas não era isso. Era sangue mesmo o que escorria dos canos.

Sangue denso, como o que corre nas veias, sangue autêntico. Sangue vermelho intenso, gorduroso, meio nojento até.

Abriu a torneira mais um pouco e uma chuveirada de sangue caiu pelos seus ombros, lhe pintou os seios, escorreu barriga abaixo. Sentiu que saia também das suas entranhas, do sexo escorria o líquido viscoso, rubro. Tudo ia se colorindo de um vermelho intenso num espetáculo de terror.

Fechou a torneira por instinto, rápido, misericórdia, de onde vem esse sangue assim abundante, esse escândalo de hemorragia.

O casal do andar de cima briga muito, vai ver ele feriu ou matou a mulher, acontece todos os dias. O sangue entrou na tubulação, agora escorre aqui, vai ver foi isso.

A esse ponto estava circundada por uma onda violenta de vermelho, o chão branco do box com respingos nas paredes encardidas de azulejo bege. Quando saiu da área do banho mirou-se no espelho acima da pia. Lavou o rosto, aterrorizada, mas o sangue não desistia. Em meio à hemorragia percebeu olheiras fundas, as velhas olheiras das noites maldormidas.

Mas isso agora não importava porque o sangue brotava dos olhos fundos em gotas pequenas, como lágrimas de alguém que morre fulminado na guerra ou por um desses vírus mortais. Abriu a boca e ali também tinha pontos de sangue que gotejavam vindo dos dentes de trás.

O sangue me tomou, se ocupou de mim, o que é isso pelo amor de Deus?

Veio à cabeça as aulas do ensino médio, conceitos sobre o que é sangue. Foi uma boa aluna. Veio à memória as palavras plasma, glóbulos vermelhos, hemácias, tipo sanguíneo. Fluido corporal espesso. Símbolo da vida e da morte.

Estava tudo ali.

O sangue agora saia dos ouvidos espirrando em guichos finos. O rosto se alterou para uma massa vermelha, ativa, o nariz entupiu e quando assuou expulsou um coágulo. Tinha sangue que saia também das unhas e por todos os poros.

Talvez pelo choque, entrou em uma espécie de transe. As visões das névoas dos sonhos surgiram e se confundiam com sua imagem bizarra, vermelha de sangue. Agora entendia as mensagens que tinha recebido tantas vezes, mas não se lembrava porque sempre acordava para dar ritmo à vida. Agora tudo parecia claro, tudo decifrado.

O sangue continuava a esguichar, encharcando a toalha felpuda. As névoas começam a tomar forma fora do espelho, afinal se apresentavam.

No entanto, como era do tipo prática, a lucidez voltou, o pensamento se reorganizava. Pensou que devia ligar no trabalho e avisar que aquele dia, por motivo de força maior, não…

Texto: June Meireles

Foto: Pixabay

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