Bolo de sábado

Bolo de sábado

Alô…alôoo, quem fala? Mas que chatice, quem fala? Quem está ligando?

Já era o terceiro dia em que atendia o telefone mas ninguém dizia nada. Desconfiava, porém, quem estaria do outro lado, sem coragem de falar.

Geraldo, é você, não é? Fala de uma vez. Eu vi você me olhando na feira. Edilza também me falou alguma coisa, tenho certeza que é você. Diga logo o que você quer, senão…

Pensa que é fácil, Denise…

A voz saía irregular.

Ah, então é você mesmo.

Por quê, não tinha certeza? – Limpou a goela, ainda se recuperava, mas a partir dessa segunda frase a adrenalina baixava.

Desconfiava, mas não tinha certeza.

Vai desligar? – a voz está quase normal, embora a adrenalina continuasse alta. Ela, ao contrário, parece firme e seca.

Não. Estou falando, não estou? Diga, o que é?

Assim não dá pra falar. Queria encontrar contigo, fora daqui.

Fora daqui, onde?

Da cidade. Aqui é um inferno, tudo que se faz é visto, comentado.

Mas qual é o assunto Geraldo. Já não chega tudo o que aconteceu?

Olha Denise, sei que você está chateada e tem toda razão do mundo…

Geraldo, não tô chateada não. Só quero saber o que você quer conversar, só isso – o tom era brusco.

Já te falei, é coisa séria, por telefone não dá. Pensei de a gente ir em Grataúna, sentar num lugar sossegado e conversar.

Essa é a semana que estou aplicando prova, não posso sair.

E na próxima? Vai ter o feriado…

Olha, Geraldo, pode até ser mas preciso saber o assunto primeiro.

É que se passou tanta coisa, tanta confusão, mas eu queria ver com você… – faz uma pausa, procura as palavras.

Oi, tô ouvindo.

De a gente voltar. Mas já te disse, quero falar com calma, pessoalmente.

Voltar pra onde, Geraldo? Você me trocou por uma piriguete que me humilhou em público, trocou a vida que a gente tinha, um casamento como o nosso… Quer dizer que ela já te chutou, ou te corneou?

Por isso que eu não queria falar por telefone, tá vendo? Semana que vem você pode ir a Grataúna, é só me dizer dia e horário. Não podemos ir juntos porque a cidade é pequena, fica todo mundo de olho.

Estou com muita coisa pra resolver. Denis, meu sobrinho, filho de Marli, está com um problema sério no ouvido. Essa semana fiquei de levar num especialista ai, bambambã.

Ouvi dizer. Mas o que foi? Uns dizem que foi fogos de artifício, outros que é infecção.

Que bomba que nada, não se sabe ainda.

Quer que eu vá junto?

Onde?

Na consulta.

Geraldo, você tá sonhando? Bebeu? Minha família quer te ver morto.

Tá certo, Denise, não precisa ficar nervosa. Na próxima semana você acha que consegue?

Vou ver, não garanto não. Me liga outra hora.

Certo, ligo sim. Mas olha, já tô muito feliz de falar contigo, viu?

Mas não se anima muito não. Muita coisa mudou.

A gente conversa, Denise. Boa noite.

***

Denise?

Oi Geraldo

Pode falar?

Posso, diga.

Não, tô ligando pra gente continuar a conversa.

O que aconteceu, a piriguete foi embora?

Não, tá aqui ainda. Mas olha Denise, não aguento mais. Agora ela saiu, vai demorar, foi pro salão, vai demorar umas duas horas.

Tá gastando teu dinheiro né, Geraldo?

O pior não é isso. A casa tá uma zona, o banheiro cheio de cabelo pelo chão, já entupiu o ralo do box, nunca vi cair tanto cabelo, acho que é tanta química que ela dá… a casa toda suja, a comida cheia de óleo, tem dia que não almoço nem janto, intragável. Fico lembrando como você é organizada, tudo direitinho, a caixinha de remédio, a caixinha da costura, aquele bolinho que você fazia toda tarde de sábado.

Mas você não viu nada disso né, Geraldo? Ficou louco por uma sujeita vulgar, deixou ela me xingar, fazer barraco. Bem feito pra você. Nem sei por que estou falando contigo.

Calma, Denise, todo mundo erra, estou sendo humilde. Depois acho que isso não é conversa pra gente ter aqui, por telefone. Você vai poder encontrar comigo semana que vem?

Não sei não, Geraldo, sinceramente não sei. Talvez seja melhor, não.

Não, Denise, vamos conversar. O divórcio ainda não saiu, a gente tem chance de reatar.

Mas você não disse que estava apaixonado?

Eu falei?

Falou sim, falou pra muita gente.

Estava iludido, Denise. Dizem que a paixão é como uma droga, eu estava doente. Você que é minha esposa, a pessoa que eu amo e que é certa para mim. Só preciso do seu ok pra mandar ela embora de uma vez. Todo dia tem briga, discussão chata.

Mas ela vai aceitar?

Já pensei em tudo, vou dar um dinheiro. Ela sempre fala que quer viajar, aí vai pra longe, é louca por São Paulo, as primas moram lá.

Você já passou alguma coisa para o nome dela?

Não, não. Ela não sabe dos terrenos, nada. Nesse ponto é bem desligada.

Mas hoje em dia tem a união estável, ela vai correr com advogado.

Mas eu continuo casado com você, não tem como, não. Depois ela é meio louca, sem juízo, impulsiva demais. Acho que ela também não tá gostando porque eu cobro limpeza, ela já disse que não nasceu pra ser dona de casa.

Tá bom, Geraldo, não sei se na semana que vem eu consigo. Vamos com calma. Tem muita coisa pra acertar ainda, não pense que é assim não.

Assim como?

Fácil. Você pinta, borda, e depois quer que eu volte correndo pra você como se nada tivesse acontecido?

Não seja rancorosa, Denise. A gente tem muito chão ainda, nossos filhos ainda nem nasceram. Depois quantos anos de noivado? Somando com o casamento oito anos.

Não é assim tão fácil Geraldo, minha família não vai aceitar.

Com jeitinho eu converso com todo mundo. Pode não aceitar no início mas depois vamos retomando tudo como era antes. Outro dia eu estava no bar, vi Luiz jogando sinuca, o cunhado não me olhou com cara feia.

Denise dá uma pausa e suspira.

Alô, alô… Denise?

Tá bom, me liga aí outra hora.

Geraldo sentia-se enamorado da ex-mulher e se deliciava nessa conquista, nos telefonemas escondidos. Isso de algum modo reacendia nele o interesse por Denise. Quando estavam casados o sexo andava cada vez mais escasso, ele desinteressado.

No domingo à tarde, procissão do padroeiro, viu Denise de longe, com a irmã, a mãe e uma sobrinha pequena. Sentiu o coração disparar. Estava diferente, com um sapato alto, uma calça jeans, uma camisa estampadinha, uns brincos grandes. Estava linda demais, Denise. Apreciou as coxas, a bunda, o pescoço. Que pele bonita, e passa uma ideia de limpeza, de asseio, de coisa cheirosa. Ai Denise, tô louco por você – pensava Geraldo, enquanto tentava encontrar o olhar com o dela. Denise percebeu, olhou e riu de canto de boca, cúmplice. Depois não olhou mais, ele entendeu que era preciso disfarçar e todo esse ritual o deixava imerso em um estado estimulante de romantismo. Assim seguiu o resto da tarde, seguindo-a de longe, até ver que o grupo entrou na pizzaria. Mas aí teve que ir pra casa porque já tinha três ligações perdidas no celular. Márcia.

***

Alô?

Oi, Geraldo.

Tava linda ontem.

Você ficava me olhando, todo mundo percebeu – o tom era complacente.

É bom, assim vão se acostumando. Gostou da festa?

Foi bonita. E você, tava sozinho?

Dona Encrenca não quis ir, depois ficou me ligando, enchendo o saco.

Você já falou com ela que quer se separar?

Ainda não, mas assim que a gente conversar e acertar tudo já falo com ela.

Olha Geraldo eu pensei melhor… acho melhor parar por aqui.

Não Denise, larga mão… Faço qualquer coisa pra voltar. Eu até pensei, a gente faz uma viagem, some e depois já volta juntos.

É uma ideia mas eu quero algumas garantias.

Que garantias, diga…

Geraldo, você me traiu, me trocou por uma sujeitinha vulgar…

Denise…

Não, deixa falar. Agora eu quero garantia de que você amanhã ou depois não fazer a mesma coisa.

Tá. O que você quer?

Então, pensei de você passar o sobrado da Rua Castro Alves pro meu nome. E os dez lotes do Muxambinho.

Ué, Denise, mas se a gente tiver junto é tudo seu.

Você esqueceu que a gente casou com separação parcial de bens? Que só tenho direito ao que a gente construir junto?

Sim, meu anjo, mas você sabe, foi tudo herança. Se eu passo pra você vai ter confusão, você sabe como é minha família.

O inventário já foi feito e tá tudo no seu nome que eu sei, Geraldo. Essa é a minha condição. Depois eu volto pra você. Não posso dizer que não sinto sua falta. Mas tenho que pensar no futuro, nos filhos, se você virar a cabeça novamente vou ter como manter a família. E depois é como diz você: tudo o que é meu é do casal.

Olha, faz uma coisa, deixa eu pensar um pouco. Mas uma coisa é certa, de todo jeito vamos voltar.

Tá bom, agora vou ter que desligar.

Ok, ligo amanhã, e olha… tá linda demais, viu…

Geraldo tinha um comércio de material de construção. O negócio se mantinha mas, com a crise, muita gente parou as obras, outros nem chegaram a iniciar algum projeto de reforma. O que entrava garantia o salário dos empregados e as contas do mês, incluindo as parcelas de um empréstimo feito no banco para capital de giro. As propriedades – que incluía a casa onde morava e a loja – foram herdadas do pai, um comerciante esperto, que passou a perna em muita gente e construiu um patrimônio que deixou para os três filhos, Geraldo, uma irmã e um irmão mais novo. O velho tinha morrido há cinco anos e na divisão dos bens Geraldo ficou com dez lotes em uma área longe do centro, mas promissora, sendo cinco deles muito valorizados, e um sobrado antigo, mas reformado e agora alugado, o da Rua Castro Alves. Valia muito também porque ficava em uma rua central da pequena cidade.

***

Alô, Luciano? Tô precisando falar com você.

Dr. Luciano, advogado habilidoso com as palavras e as leis, atuava em tudo que é área do Direito. Separações, ações trabalhistas contra e a favor do patrão, questões envolvendo terra. Tinha feito inclusive o inventário do pai de Geraldo. Beirava os quarenta anos e, conforme os anos se passavam, mais calvo e mais raposa ia ficando o Dr. Luciano.

Olha Geraldo, você tem que ver direitinho esse negócio – aconselhava.

Ela pediu os dez lotes, oferece cinco, mais o sobrado. Se vocês voltarem mesmo fica tudo certo porque o que for dela é seu.

Ela disse que quer que eu passe para o nome dela como garantia.

Olha amigo, vou te dizer uma coisa: se você acha que vale a pena reconquistar sua mulher, pague o preço. Pelo que você me diz ela está assustada com o que passou. Aquela lá xingando ela na feira, todo mundo olhando, Denise é menina de família. Depois você, aqui pra nós, foi bem filho da puta.

Mas Luciano, não era pra ser assim. Casamento você sabe, quer dizer, não sabe porque não é casado, mas vai caindo na rotina. Depois – olhava em volta, baixava a voz – Denise é muito religiosa, pra transar com um abajur aceso foi um parto… Aí veio essa Márcia, boquete garganta profunda direto…

Há há há há – Denise não fazia? – indaga o advogado.

To te dizendo… só papai e mamãe com luz quase apagada.

Mas esse tipo de coisa a gente tem que ensinar.

Pode ser que faltou isso, sim. E depois não era pra Denise ficar sabendo. Eu andava cansado do casamento, aquela limpeza dela, toda aquela organização, até aquele cheirinho de bolo assando no sábado à tarde me irritava, sempre a mesma coisa… sabe como é homem, queria uma aventura. Só que ela ficou sabendo e foi aquela confusão que você sabe.

Bem, meu conselho está dado. Você na verdade vai pagar uma espécie de multa pelo seu mal feito. Paciência, Geraldo. No fim das contas você ainda sai no lucro porque essa Márcia aí, vou te contar…

Foram mais três ou quatro telefonemas para Denise, que surpreendia Geraldo pela segurança com a qual conduzia as negociações.

Além de tudo é esperta e inteligente – pensava Geraldo. Ainda tentou demovê-la mas, sentindo a firmeza de propósito da ex-mulher, achou melhor aceitar. Havia na família dele uma espécie de pacto no qual ninguém passava bens herdados a terceiros. Era uma velha máxima do patriarca que repetia sempre: “o que é de sangue deve ficar no sangue”. Mas levando em conta seu grande desejo de voltar a ter a mulher, e tendo em vista os experientes conselhos do Dr. Luciano, decidiu aceitar as condições. Ademais, ele tinha conseguido, conforme orientação do Dr. Raposa, ficar com cinco lotes, pouco valorizados, longe do pequeno comércio do bairro. O sobrado continuaria alugado, a renda seria do casal. Ok, não tinha mais o que pensar. Era sua vida de volta. Até porque com Márcia a coisa ia de mal a pior. A jovem era preguiçosa e dormia até tarde enquanto a casa se mantinha imunda. Na hora do sexo ele não tinha qualquer tesão naquele cheiro de gordura misturado com perfume. Boquete que é bom, cada dia uma desculpa, até dizer que Geraldo devia consultar um médico porque o cheiro por ali não era dos melhores. Pura desculpa porque ele havia cheirado suas partes e o que tinha era o odor natural de macho.

Enfim, vida nova. Um encontro foi marcado no cartório. Como era de se esperar, o trâmite foi feito por Dr. Luciano, o Raposa, que cuidou da papelada e dos detalhes. Seu primeiro pensamento ao acordar naquele dia foi que teria esse encontro. Ainda na cama, começou a ensaiar o que falaria com Márcia – que dormia ao seu lado.

Vamos encarar que não deu certo, somos muito diferentes, estou passando tal cifra para sua conta, é o suficiente para recomeçar a vida, você pode ir fazer seu curso de cabeleireira em São Paulo…

Omitiria que estaria voltando para a ex-mulher, isso poderia despertar a ira da moça. Achava, contudo, que o dinheiro iria acalmá-la, era uma boa soma, devia lembrar-se de falar sobre isso logo no início, antes que ela surtasse. Depois trataria de chamar alguém para limpar a casa, trocaria o sofá que ficou gasto e seboso em pouco tempo e o fogão, duas bocas estragadas e uma gordura entranhada. Enquanto isso namoraria Denise até que voltassem a viver juntos e pudessem, enfim, ter um casamento pleno, sem traições ou sexo insosso. Aí viriam os filhos, o mais velho poderia ser médico… calma Geraldo, vamos por parte – dizia a si mesmo, tentando controlar a empolgação.

No dia marcado levantou-se animado, partiu para o banho, fez barba, vestiu a roupa escolhida na véspera, perfumou-se. Certificou-se que Márcia ainda dormia (e dormiria ainda por várias horas, eram apenas 7h20 da manhã).

O Dr. Raposa foi o primeiro a chegar. Pastinha na mão, terno cinza, o cabelo grisalho e já ralo arrumado, parecia decente e confiável. Mais cinco minutos e chegou Denise, com um vestido de verão colorido, unhas e cabelos arrumados. Sim, ela havia mudado, e para muito melhor.

Ela também se preparou – avaliava Geraldo, cada vez mais animado.

Enquanto esperavam pelo ritual da papelada, ele se aproximou.

Não vejo a hora de comer aquele bolo que você fazia no sábado. Sonho com aquele cheirinho.

Denise se limitou a sorrir fazendo uma caretinha no canto da boca, uma marca bem sua quando estava satisfeita.

Nunca mais eu fiz – nas entrelinhas e na cabeça de Geraldo: – Sem você, não tem graça.

Assinaturas das testemunhas, apertos de mãos finais, o dono do cartório em pessoa cuidando de tudo, parabéns, sem manifestar curiosidade ou qualquer comentário, como mandava a discrição do seu ofício.

E aí, quando a gente se vê pra conversar, tem muitos detalhes pra acertar Geraldo perguntava a Denise em tom baixo, já na porta de saída.

Pois é, pensei no sábado, mas não posso demorar. Meu sobrinho foi diagnosticado com um tumor no ouvido, é benigno mas tem que operar, estou correndo com isso.

Ah sim, soube por alto, vai dar tudo certo. Sábado tá ótimo, que horas e onde?

Vamos a Grataúna no Café Sorriso Doce, pode ser? Às cinco horas da tarde.

Tá ótimo. Hoje é quarta, no sábado vou pra loja de manhã e à tarde te encontro. Mas, ó, vai sem pressa, tá ok? – piscou, sentindo um certo formigamento nas partes baixas.

Denise novamente riu de canto de boca, nas mãos as escrituras dos cinco lotes e do sobrado da Rua Castro Alves.

***

Geraldo seguiu para o Café Sorriso Doce meia hora antes do combinado. Estreava camisa de linho, a barriguinha disfarçada, cueca nova, tinha trocado os óculos que achou antiquado por outro mais jovial. Usou um pós-barba cheiroso, mudou o sapato duas vezes, olhou-se no espelho, se achou gordo, murchou a barriga, olhou a bunda, estava um pouco maior – acho que engordei, também essa comida gordurosa e bolo de padaria todo dia – colocou a camisa por dentro, depois por fora, achou melhor por fora, Márcia tinha saído, não tinha com que se preocupar.

Cinco e dez. Ansioso, olha o relógio. Pensa em enviar uma mensagem no celular, melhor não, ela está chegando, dizia de si pra si. O Café Sorriso Doce é um desses locais de lanche bem arrumadinhos, que serve o chá em uma chaleira de louça branca e um dos poucos na região que tem café expresso. Geraldo acha o expresso muito forte mas quis impressionar Denise e pediu um. Tomou um gole, achou amargo, encheu de açúcar e quando o rapazote quis recolher ele disse:

Não, deixa por enquanto.

A xicrinha permaneceu na mesa, ele achava importante ela ver que ele já havia tomado um café e era expresso. Depois certamente comeriam um daqueles cuques de castanha, especialidade da casa, ou uma fatia do bolo de nozes da vitrine. Ele se lembraria de dizer que ali tem suco de morango, que ela adora, e chegaria mais perto.

Perdia-se nesses doces pensamentos quando se deparou com Márcia, em carne, osso, mechas e vulgaridade. Surgiu do nada. De pronto, Geraldo pensou:

Ai, ai, ai, ela descobriu e veio fazer barraco. Imagine estragar tudo agora, Denise está pra chegar.

Mas antes que pudesse dizer um “calma Márcia” ela mandou o verbo com toda a carga de irritação a quem tinha direito e uma dose extra.

Eu ainda tinha esperança de não ser verdade mas tô vendo que tu é um fraco mesmo, né Geraldo? Olha só, tá branco igual a um não sei o quê… E antes que você pergunte, foi a songamonga da tua mulher que me ligou avisando tudo. Dia, horário, pra te humilhar, que é o que tu merece. Pra teu governo, ela tá junto com o Dr. Luciano, e não é de hoje, os dois viajaram, estão longe em lua de mel, tá entendendo, Geraldo? Ela me ligou e disse que eu posso fazer bom proveito de você porque o que ela queria ela já tinha que era uns terrenos, sei lá, não entendi direito essa parte… só sei que ela e o Dr. Luciano te enganaram porque tu é bundão, Geraldo. Ela disse que só quer o divórcio agora, que você é um sem graça na cama, que finalmente ela conheceu o que é um homem, olha, te esculhambou, se você quer saber. E depois me disse que você ia esperar ela hoje aqui nesse café. Otário, Geraldo, otário é o que tu é.

A sorte é que o Café estava quase vazio. Mas as pessoas das duas mesas ocupadas – um grupo de velhas senhoras que se encontravam para um chá da tarde e um casal de namorados na outra, com uma menina – assistiam ao triste espetáculo de camarote, com aquela expressão de felicidade comum a quem está de fora de um problema.

Márcia continuava a berrar.

Geraldo olhava a legging gasta, a unha grande, com um esmalte rosa chiclete, algumas decoradas com umas rosinhas. Sentia o cheiro dela, um perfume doce e forte, misturado a certa falta de higiene. Uma camiseta apertada, os seios pequenos sem sutiã, uma sandália rasteira de mau gosto. A maquiagem era a mesma de sempre, o olho ligeiramente borrado pelo rímel, restos de sombra, batom forte, os gestos agitados, quanta grosseria. Falava cada vez mais alto. Da varanda de um prédio vizinho saíram duas adolescentes que riam com a cena no Café. Atrás do balcão, o dono do bar olhava atento, pronto a intervir.

Em meio à confusão de pensamentos, uma frase do Dr. Raposa latejava na mente de Geraldo:

“Esse tipo de coisa a gente tem que ensinar”.

Texto: June Meireles

Foto: Gundula Vogel por Pixabay

 

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