A Caverna, de José Saramago
E a sensação de quando se passa horas dentro do shopping
Ler o grande escritor português José Saramago (foto) não é tarefa das mais fáceis para um leitor comum. Livre como um pássaro, Saramago tem um estilo de escrita que pode assustar aos desavisados, quando no lugar de dois pontos aparece uma vírgula, uma vírgula vem antes de uma maiúscula e o pensamento parece seguir sem freio, com diálogos sem travessão, muitas digressões e outras particularidades.
O que aparentemente pode ser uma subversão das regras da escrita é o estilo do autor, coisa que não é para qualquer um. Saramago pode fazer o que quiser, porque tem profundidade, talento e competência para tal. Não por acaso, é o único a vencer, até o momento, o Nobel de Literatura em língua portuguesa.
Outra coisa que torna Saramago um pouco difícil são os conceitos filosóficos por trás das obras – embora, ao mesmo tempo, seja plenamente possível gozar da leitura que é agradável e mesmo simples.
Em A Caverna, por exemplo, existe uma alusão ao mito da caverna de Platão, contida no livro A República, a qual não me deterei aqui, e cujo conceito, pode sim ser entendido, mas pressupõe um certo esforço a quem não tem conhecimento filosófico. Pessoalmente, gosto muito de Ensaio sobre a Cegueira, Intermitências da Morte e Claraboia. O Convento – confesso – deixei pelo meio, coisa rara. A Caverna, li, gostei e recomendo vivamente.
Crítica à sociedade consumista
O romance trata da luta de uma família de oleiros pela sobrevivência, diante de um mundo que já não aprecia mais peças artesanais cozidas em barro. O chefe da família, Cipriano Algor, é o mestre da olaria. Marta, sua filha, vive com ele e é a sua fiel companheira na vida e no trabalho. É Marta quem faz um esforço sobre-humano para diversificar e “modernizar” as peças, depois que o pai é informado pelo seu único comprador que vai encerrar as compras. O motivo do comprador é que as pessoas não tem mais interesse nesse tipo de mercadoria, preferindo (as sofríveis) peças em plástico.
A família de oleiros vive em uma pequena aldeia, numa casa com uma amoreira-preta na frente, um cachorro chamado Achado, a furgoneta – um velho modelo de camionete que transporta as peças em barro até o comprador – e a olaria propriamente dita.
Em oposição a esse estilo de vida livre e natural existe o que o autor chama de Centro, aqui entendido como uma espécie de shopping center gigante, urbano e tecnológico – que também era o comprador das peças em barro.
O que aparentemente é um enredo simples tem a marca de Saramago, de uma critica profunda e muito bem estruturada da sociedade dita pós-moderna – capitalista e consumista.
Em 2011, produzi um documentário sobre construções historias que hoje abrigam shoppings centers em Curitiba, capital do Paraná. São elas a antiga Estacão Ferroviária (shopping Estacão), a metalúrgica Mueller (shopping Mueller) e um antigo Quartel do Exército (shopping Curitiba). As fachadas estão preservadas com suas características originais, porém, dentro são iguais a qualquer shopping de Singapura, Nova York ou Salvador. E nada disso é por acaso. Os shoppings tem uma espécie de modelo, que muda aqui e ali, mas essencialmente segue o mesmo padrão. (Caso tenha interesse o doc. Curytiba Sinais do Tempo esta disponível no You Tube em duas partes).
Caixa fechada voltada ao consumo
O shopping é sempre uma caixa fechada, embora com algumas simulações nas vias de passagem que lembram pequenas praças. Isso é feito com o propósito de remeter ao comércio de rua, em espaço aberto, incluindo bancos com design antigo. A ideia é criar a sensação que estamos livres, quando na verdade estamos aprisionados a serviço do consumo.
Os shoppings centers não tem relógios, e isso também não é um acaso. Quem entra ali deve esquecer a vida lá fora. A luz artificial não te dá sinal se é dia ou noite, porque você deve estar centrado no consumo. Saber que escureceu ou que é uma tarde quente de verão, talvez te lembre que existe vida, natureza e que esta quase na hora do jantar. Mesmo porque, se quiser comer, tem a disposição as praças de alimentação, com seus fast foods em abundância. Ou seja, a caixa te dá tudo o que você precisa, só que não.
Não sou contra shopping centers, mas não consigo passar horas a fio ali dentro. Tem um momento que quero sair, como se algo me aprisionasse. É a mesma sensação que senti lendo A Caverna, principalmente do meio para o final do livro, quando a família deve, por força, se mudar para o Centro.
Marta, filha do mestre oleiro, é casada com Marçal, que trabalha na equipe de guarda do Centro. Ele tem direito a um apartamento que será ocupado pela família, diante da impossibilidade de sobreviver da olaria. O cãozinho não vai porque não é permitido animais.
Nesse local os moradores usam crachá, são vigiados por câmeras de vídeo e não podem abrir as janelas de casa, tudo fechado e devidamente climatizado, não se passa calor nem frio. Ali também tem muitas opções de diversão, ali se come, se vive e se trabalha sem ver a luz do sol e da lua, como diz Marta, “a respirar ar enlatado todos os dias”. De novo, a sensação do shopping.
Não vou citar o final do livro, que remete diretamente ao mito da caverna de Platão. Melhor que você, querendo, leia e descubra. Mas podemos falar da metáfora do livro nas palavras do próprio Saramago.
“É a visão de um mundo possível, onde os seres humanos quererão habitar no interior dos mesmos espaços comerciais que lhes vendem o que necessitam ou creem necessitar. É uma metáfora da vida nos países desenvolvidos ou que, não o sendo, se enganam a si mesmos em virtude de uma prosperidade apenas aparente.”
A Caverna é o primeiro livro escrito por Saramago depois de vencer o Nobel de Literatura de 1998. A versão que li é a quinta edição publicada da Porto Editora. São 364 páginas as quais te farão pensar sobre a vida que levamos. Se você já leu, por favor, comente suas impressões sobre a obra e sobre a resenha.