Angústia, de Graciliano Ramos
- Um romance excepcional com narrativa em primeira pessoa
Vidas Secas é o livro mais festejado de Graciliano Ramos. Mas eu, leitora, amo de paixão, Angústia. Publicado em 1936, é o que se chama de romance psicológico, com narrativa em primeira pessoa. O protagonista é Luiz da Silva, um atormentado funcionário publico e jornalista nas horas vagas de Alagoas, Maceió, nos anos 1930.
Luiz é típico cidadão daqueles tempos, que ganha pouco, se entedia muito em uma vida banal, com uma grande angústia da existência e dificuldades concretas, como a de pagar o aluguel.
Até que se apaixona por uma vizinha, Marina, uma piriguete frívola, vaidosa e superficial. Chegam a ficar noivos, mas Marina o troca por Julião Tavares, sujeito péssimo, que coleciona estupros e enganações em mocinhas pobres – mas é bem situado na vida.
Para Marina, focada nos presentes generosos e no status que chega a ela pela via de Julião, o seu caráter duvidoso não interessa.
Para Luiz da Silva, no entanto, a perda da namorada tem um impacto terrível na sua solidão e na sua esquisitice.
Vem à tona o ciúme, o despeito e todas as frustrações de um jovem que assiste, humilhado, a uma suposta felicidade do novo casal:
“Aos domingos iam ao cinema, juntos, de braço dado, bancando marido e mulher – ele com ar bicudo e saciado, ela bem-vestida como uma boneca e toda dengosa. Seda, veludo, peles caras, tanto ouro nas mãos e no pescoço que era uma vergonha”.
Final trágico
Pois é esse grande incômodo na alma que vai marcar o desfecho do romance, que se desdobra em uma ação trágica, que vale a pena descobrir, lendo.
Falando um pouco sobre o estilo de texto, como é moderno! Em um sentido muito particular para mim, que considero moderno um texto curto, cortante, profundo e ao mesmo tempo fluido, fácil.
Que maestria em conduzir o fluxo de pensamento (e consciência) de Luiz da Silva sem uma ordem cronológica. A narrativa volta inúmeras vezes à fazenda colonial onde viveu Luiz, relembra fatos típicos ali vividos, e praticamente os mistura com sua realidade presente.
Veja esse trecho no qual ele relembra a infância, e emenda com a comparação da sua rua, no presente:
“Moravam ali três mulheres velhas que pareciam formigas. Havia rosas em todos os cantos. Daqui também se veem algumas roseiras maltratadas no quintal da casa vizinha. Foi entre essas plantas que, no começo do ano passado, avistei Marina pela primeira vez, suada, os cabelos pegando fogo.”
Em um brilhante posfácio, Silviano Santiago diz que “Em Angústia, o traçado entre a grande narrativa e as micronarrativas têm a originalidade acentuada pela forma inusitada como ocorrem os encaixes”.
A força de uma descrição
O fluxo do nosso pensamento vai mais ou menos assim. Estamos num parque num domingo de manhã, temos sede e pensamos em um picolé de limão, gelado. Vamos ate a lanchonete e ali tem um atendente com o cabelo em gel, penteado para trás. Lembra um colega que fazia bulling na escola.
O picolé deixa de ser importante, agora vem a lembrança do colega, aquele sujeito ruim, lembramos de ouvir dizer que esse tipo se casou e batia na mulher. Pensamos que não queremos encontrar essa pessoa, sentimos a humilhação de um certo dia de bulling.
O rapaz do cabelo em gel pergunta o sabor do picolé – limão, voltamos ao presente enquanto uma menina chora pedindo alguma coisa a mãe. O pensamento desvia para pensar que essa menina poderia ser menos mimada.
Esse é o fluxo de pensamento, um tanto caótico, mas organizado ao mesmo tempo. Agora, reproduzir tudo isso com sentido e verdade não é pra qualquer um.
Além do grande domínio do autor em reproduzir essa instabilidade mental, típica e natural, me encanta em Angústia a habilidade de Graciliano nas suas descrições, pouco óbvias, cheia de impressões de um olhar subjetivo, muito pessoal, de escritor engenhoso.
“Defronte da minha casa veio morar uma família esquisita, que não se relacionou com a vizinhança: um velho barbudo, encolhido, e três moças amarelas, sujas, malvestidas, ruivas e arrepiadas.”
“A noite fecho portas, sento-me a mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal.
Vitória resmunga na cozinha, ratos famintos remexem latas e embrulhos no guarda comidas, automóveis roncam na rua.”
Um livro valoroso que, não por acaso, chegou a 87° edição em 2021 pela Editora Record. Embora se chame Angústia, não tem nada de pesado ou opressivo, ao contrário, é muito agradável de ler do começo ao fim. Um deleite, que recomendo vivamente aos que amam a boa literatura.
Capa: Edição José Olympio