O primo Basílio, de Eça de Queiroz
Narcisismo perverso em dois personagens
Não é por acaso que O primo Basílio, romance do sensacional Eça de Queiroz, de 1878, inspirou filmes, novelas e minisséries. O tempo da narrativa é cronológico e linear, a trama de fácil entendimento. Um outro aspecto da popularidade desse romance pode se dar ao fato de que pelo menos dois dos seus principais personagens, Juliana e Basílio, são de um mau-caratismo exemplar, o que tempera a trama e desperta o interesse do público que, em geral, adora os malvados.
A seu modo, cada um dos personagens responde com galhardia às características dos transtornos de personalidade, antissocial e narcisista – são egoístas ao extremo, invejosos, ausentes de empatia, cruéis – dentre outros defeitos graves.
O escritor é, em geral, alguém com uma carga de sensibilidade e capacidade de observação maior que o senso comum – por isso mesmo, visionário. No século XIX, é provável que Eça não tivesse conhecimento teórico sobre os transtornos de personalidade, amplamente explicados e discutidos nos nossos dias. Os estudos nessa área eram incipientes. No entanto, a descrição do caráter desses dois personagens é um verdadeiro estudo prático, seja do narcisismo, seja do transtorno de personalidade antissocial – a declamada psicopatia. Os dois transtornos se confundem bastante e variam em esfumaturas diversas, indo do menos pior ao muito pior, em último grau.
Naquela época, sabia-se que alguém era ruim e pronto
Hoje já se sabe que a maldade crônica, a falta de remorso e empatia diz respeito a um distúrbio da personalidade, no qual o portador faz suas perversidades de forma consciente, sem delirar. Esse é um dos motivos pelos quais a ciência médica, que continua a cavocar em torno de problemas tão complexos, exclui tais transtornos da lista das doenças mentais. De todo modo, é um desequilíbrio que deixa marcas dolorosas, quando não acaba com a vida de quem se mete com eles, os transtornados.
Juliana, considerada por alguns como a personagem mais completa da obra, tem um rancor enorme dentro dela. É feia, virgem e odeia a profissão subalterna de empregada doméstica, ou criada, como se dizia. Odeia mais ainda seus patrões e aquilo que é obrigada a desempenhar nas funções da casa. Diga-se de passagem, que dentre suas tarefas estava a de recolher o penico cheio de dejetos, todas as manhãs. Direitos trabalhistas e respeito pelo empregado também não eram prática comum. Ou seja, gatilhos não faltavam para disparar a inveja patológica e a ira de uma narcisista. E aqui não estamos falando dessa invejinha bem humana que todos nós temos, uma hora ou outra. O narcisista acredita que aquilo de bom que você tem deveria ser dele por direito. Passa a te odiar por causa disso, querendo, além de tudo, sua energia e sua força. Ou seja, quanto pior você estiver, melhor ele estará.
Pobre Luíza
O segundo personagem, o primo Basílio, é também um transtornado de personalidade. Vaidoso, superficial, sedutor, manipulador e indiferente à dor alheia. Em bom português, um tipo que não vale nada.
A vítima dessas duas almas obscuras é Luíza, uma mocinha romântica que se casa com Jorge. A vida segue muito direitinha até que Jorge viaja a trabalho ao Alentejo, (região Centro Sul de Portugal).
Luíza permanece em Lisboa, um tanto entediada. Eis que aparece Basílio, o primo com quem havia tido um namorico na juventude. Ele desembarca em Lisboa, vindo de Paris, e é descrito como um dândi, elegante, bico doce, na verdade, um bom vivant irresponsável.
Basílio começa a cortejar a prima, que resiste pouco. Para ela, os encontros furtivos com o amante significa materializar os romances que leu na sua curta vida de garota.
“Ia encontrar Basílio no Paraíso pela primeira vez. E estava muito nervosa: não pudera dominar, desde pela manha, um medo indefinido…
Mas ao mesmo tempo uma curiosidade intensa, múltipla, impeli-a, com um estremecimentozinho de prazer. Ia, enfim, ter ela sua aquela aventura que lera tantas vezes nos romances amorosos!
Havia tudo – a casinha misteriosa, o segredo ilegítimo, todas as palpitações do perigo!
Neste outro trecho, temos um espetáculo da narrativa literária, tanto que Arnaldo Antunes a recita com sua voz particular e bela, na canção Amor i love you, de Marisa Monte, causando arrepios. Trata-se da reação de Luíza a um bilhete de Basílio.
“Tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!”
Agora, entenda melhor quem é Juliana, na descrição do autor.
Juliana sempre fora invejosa; com a idade aquele sentimento exagerou-se de um modo áspero.
E muito curiosa. Qualquer carta que vinha era revirada, cheirada….Remexia sutilmente em todas as gavetas abertas, vasculhava em todos os papéis atirados. Andava a busca de um segredo, de um bom segredo!
E Juliana tanto remexeu que acabou por descobrir, por uma carta trocada entre os amantes, o romance proibido da patroa. A partir dai, Luíza é cruelmente chantageada, passando a ceder a exigências cada vez maiores de Juliana, e a desempenhar as funções da empregada, incluindo aquela de recolher o urinol.
“Prosperava, com efeito! Não punha na cama senão lençóis de linho. Reclamara colchões novos, uma tapete para os pés da cada felpudo! Os sachets que perfumavam a roupa de Luíza iam passando para a dobra das suas calcinhas. Tinha cortinas de cassa na janela.
(…) E no meio daquela prosperidade – Luíza definhava-se.
As coisas só pioram, com Luíza doente e Jorge que, enfim, descobre a traição – mas perdoa. Basílio, ah, Basílio, foge de Lisboa, deixando Luíza, já na época das chantagens de Juliana, totalmente sem apoio. A história termina tragicamente, mas deixo que você, se ainda não o fez, descubra o final dessa obra-prima.
Adianto que o dialogo de Basílio com um amigo, ao final do livro, vai te ensinar muito sobre comportamentos patológicos. Aprenda com a literatura e esteja atento ou atenta a tipos como o primo Basílio!