A outra
É noite funda quando um grito ecoa na rua. De sono leve e sensível ao menor rumor, Nádia acorda. Não é um desses gritos comuns quando jovens voltam de uma festa e gritam embriagados. Parece mais um grito angustiado, quase como se alguém pedisse socorro.
– Denis? – Ela balança levemente o namorado que ressona.
– Denis, você ouviu? – Ela insiste.
– Ouviu o quê? – Ele responde, a voz ainda contagiada pelo sono.
– Um grito.
– Deve ser algum moleque.
– Mas parecia um grito meio desesperado.
– De homem ou de mulher?
– Não sei, acordei com o barulho. Primeiro entrou no meu sonho, quando acordei tinha alguém gritando.
– Você pode ter sonhado.
– Não, quando acordei a pessoa ainda gritava.
Denis se levanta, olha na varanda do quarto. Sai como está, de peito nu, apenas com o short de seda que costuma dormir. Olha atento para todos os ângulos da rua. Tudo deserto.
– Não tem ninguém, tá um silêncio de túmulo.
De baby-doll Nádia se levanta, olha a rua que tem o aspecto misterioso das madrugadas. É início da primavera e uma brisa sopra sutil.
– Estou com frio.
– O duro agora é que não vou conseguir dormir, o cigarro está lá embaixo.
– Ah, Denis, fumar a essa hora? – fala com intimidade.
– A culpa é sua, me acordou de um sono gostoso. Agora, pra voltar vai ser difícil. E como você é a culpada, desce e me faz a gentileza de trazer o cigarro.
– Eu não. Quer se meter no vício a essa hora, você que vá.
– Que sujeita ruim – diz ele bem-humorado – Tá bom… quer alguma coisa?
– Vamos juntos. Desço com você e faço um chazinho. Também perdi o sono.
– Olha só aqueles gatos – ela aponta.
Ele mira o fim da rua e lá estão dois gatos cinzentos. Vão descendo lentamente as escadas moderninhas, em caracol.
– Dois boêmios voltando da noitada. Será que gato dorme à noite?
– Acho que sim, não sei, porque nunca tive. Não gosto daquele pêlo e me dá medo o jeito como eles olham pra gente.
– Não sabia que você não gostava de gato. Tem muitas outras coisas que não sei?
– Claro que sim, senão perde a graça – ela diz, sedutora.
– E você, gosta, já criou bicho?
– Quando era pequeno tinha um cachorro em casa, se chamava Alô. Era meio neurótico, ciumento, atacava qualquer pessoa que chegasse perto do meu pai. Gostava de me perseguir e eu torcia pra alguém levar ele, tinha medo. Um dia sumiu, levou uns dias e apareceu alguém com a coleira dizendo que ele tinha sido atropelado na estrada. Senti pena e saudade, acredita? Depois quando fui morar sozinho tive uma calopsita mas minha vida era muito fora de casa. Saía para a agência às dez da manhã e voltava tarde da noite. A bichinha foi ficando depressiva. Levei para o veterinário e ele disse que era melhor dar para alguém. Dei pra um primo, depois soube que ela morreu mesmo assim. E você, já teve animalzinho? Você tem cara de quem tinha um poodle.
– Lá em casa sempre teve cachorro, mas não sou ligada em bicho.
Aconchego na cozinha, a chaleira que assovia a água quente do chá. Ele traga com imenso prazer enquanto a observa.
– Esse momento é muito novo pra nós – ele diz.
– De madrugada, eu tomando chá e você fumando?
– Exatamente isso.
Conheceu-se em Toledo, uma cidade medieval próxima a Madrid. Ela estava com duas colegas, numa espécie de congresso, era dia livre, ele acompanhado de um amigo. Todos procuravam um lugar para comer, falava-se de uma pizzaria ótima, com uma técnica especial, que não fazia inchar. Os olhares encontraram algo de acolhedor um no outro. Um afeto instantâneo, uma comunicação fácil. Ele é da Bahia, mas vivendo em São Paulo, ela de Curitiba. Ele publicitário, ela formada em relações-públicas, tinha um empreguinho.
No dia seguinte, em Madrid, o grupo se encontrou novamente para jantar num restaurante pequeno e agradável, com paredes grossas antigas e velas nas mesas de toalhas brancas. Sentiram que suas almas se buscavam e o primeiro beijo aconteceu nessa mesma noite. Não dormiram juntos – depois se comentou – porque não queriam constranger o grupo, embora fosse esse o desejo de ambos.
Até que ela, já no Brasil, recebeu uma mensagem no celular com a mesma citação de Clarice Lispector que ele já havia falado em Madrid.
“Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite”.
E numa segunda mensagem.
– Quero te ver.
Ela demorou uma hora para responder. Nunca foi muito inspirada e não queria fazer feio. Até que encontrou as palavras certas, algo que dizia a ele, ok, o sinal está aberto e também quero estar com você. Seguiram-se novas mensagens e um convite para ir encontrá-lo em São Paulo, onde estaria por algum tempo para uma campanha política.
A cabeça dela delira por aquele homem. Faz plano para a mudança, haveria de morar em São Paulo, mas ele diz que é da Bahia, pesquisa bairros residenciais, o primeiro filho, calma mulher, que ansiedade é essa. Conta para as amigas, mostra a foto, que gato, super charmoso, parece um bom partido, publicitário ganha bem, mas é um pessoal bem louco – comenta-se, Nádia rebate:
– Não, ele parece bem centrado.
Nádia teve um primeiro namoradinho na adolescência, coisa que durou um ano, até ele ir fazer intercâmbio no Canadá. De lá recebeu notícias de que havia se envolvido em um acidente leve de carro, bêbado na madrugada com uma garota do lugar. Foi o que bastou para ela se desiludir e terminar tudo por mensagem. Esperou, mas ele não insistiu e tudo se acabou.
Depois foram só casinhos, amores de balada que duravam até a segunda transa, no máximo. Homens belos, perfumados e aparentemente interessantes, mas que desistiam antes que ela pudesse se apresentar como uma pessoa de fato. Uma vez, um deles foi bem honesto:
– O cara quando vê uma mulher na balada não se interessa se ela é professora, médica, voluntária, ele a olha como carne no açougue. Se for macia e saborosa, leva – lhe disse cínico e sincero.
Achava que tinha alguma maldição, embora as amigas navegassem no mesmo mar. Uma turma de cinco solteiras que saíam frequentemente juntas para se divertir e procurar um namorado que se transformaria em marido. Não se pode dizer que não havia movimento. Nenhuma era linda, mas todas bem organizadas em seus perfumes de marca e cabelos mechados. Porém, à medida que os anos passavam, não fixavam ninguém. Apenas uma do grupo tinha um namorado, ainda assim cheio de idas e vindas, parecendo que o cara queria sempre escapar. Nas crises, as amigas consolavam.
Foi por todo esse histórico que Nádia, próxima dos trinta anos, tinha voltado de Madrid com umas comprinhas e muita esperança. Um homem bem-apessoado, trinta e nove anos, já bem plantado no marketing político.
–Vai amiga, tem que ir – estimulava as solteiras, quando Nádia comentou sobre o convite. Aquilo movimentava o marasmo dos amores malsucedidos. Nádia se arrumando seria como um sinal de bom augúrio para todas.
E assim ela se preparou. Um ritual de beleza com renovação da cor e corte, depilação, esfoliação, creme com ureia, empenho na ginástica.
Enquanto isso, trocavam mensagens, quanta expectativa. Seu romantismo prenunciava o fim de uma vida cansada de homens sem compromisso, encontros que acabam no vazio.
Coração aos pulos, ponte aérea, ele ocupado, não pode esperar no aeroporto mas deixou endereço e chave com o porteiro. Um apartamento num bairro nobre, rua arborizada e tranquila, sexto andar. Ela entrou, havia roupas espalhadas, flores e um bilhetinho amoroso dando as boas-vindas. Mas havia algo de impessoal ali, depois entendeu. Um local que ele alugou enquanto durasse a campanha, melhor, a agência alugou, tinha uma vida de muito trabalho e algumas mordomias. Cada detalhe se somava à coleção das felizes fantasias de Nádia. Não haveria problema de dinheiro, ele era interessante, criativo e carinhoso. Maridão, paizão, tezão.
Denis chegou por volta das onze horas da noite, tinha olheiras, e só agora ela notou que fumava muito. Achou-o um pouco mais envelhecido e não se lembrava de vê-lo fumando tanto assim quando se conheceram. Comida italiana, vinho e sexo nessa mesma noite, Nádia andando sem sentir os pés.
– Não posso passar o dia contigo, infelizmente. Saia um pouco, circula por aí. Virando a esquina tem umas lojinhas bem interessantes. À noite, estamos juntos.
Um, dois, três dias saindo sozinha nas redondezas. Comprava flores, limpava a casa, fazia uma comidinha para esperá-lo. Quase uma vida a dois, que ela sorvia com felicidade, como um estágio para o casamento. Era já o quarto dia – ela ficaria até o domingo – quando o grito na madrugada os levou ao chá, ao cigarro e a conversa na cozinha.
– Você é bem misterioso, sabia? – ela diz, olhando seu silêncio.
– Eu? Por quê?
– Fala pouco da sua vida. Só sei o básico até agora.
– Tem coisa que é melhor não saber – Ele diz, enquanto a enlaça e beija seu pescoço.
Ela se afasta.
– Por que é melhor não saber?
– Por que, por quê… a vida é cheia de por quês. Primeiro o “por” depois o “que”, isso quando o por que separado é uma pergunta, certo?
– Não desconversa. O que é melhor eu não saber?
Ele faz uma pausa, dá a última tragada no cigarro, coloca o toco no cinzeiro. Olha para ela, desvia o olhar, em seguida a encara, como que decidido.
– Que essa semana está sendo incrível, mas que eu sou casado, tenho dois filhos, a menor tem síndrome de Down – fala rápido, como numa cara propaganda de TV de segundos contados.
– Quê? – ela acha que ele brinca, espera uma risada.
Olha no fundo dos olhos dele e ali tem alguma coisa muito séria.
– Pior que parece que é verdade.
– É verdade, melhor falar logo.
– Por que não falou antes? – a voz sai fragilizada e baixa.
– Porque gostei de você, caramba, queria te conhecer melhor, porque tô aqui, sozinho, porque não pensei em nada, só em ficar com você. As pessoas fazem essas coisas loucas, bem-vinda ao mundo dos adultos.
– Mas você vive bem com sua mulher? – pergunta se achando banal, óbvia.
– O que você quer que te responda? Que não, que ela é uma megera, uma gorda, que fico somente por causa das crianças. A verdade é que ela é uma pessoa inteligente, bonita, me deixa viajar sozinho, você viu, estava sozinho em Madrid, fui respirar um pouco. No ano passado ela também viajou com as amigas para Portugal, fiquei com as crianças, a gente entende que casamento não é prisão.
– Mas ela sabe que você tem seus casos?
– Casos, casos, não tenho casos. Aliás, detesto essa palavra, acho preconceituosa. Conheci você, só isso. E a resposta é não, isso que rola com a gente não dá pra contar.
Os pés de Nádia, afinal, tocam o chão. Antecipa a viagem e vai embora chorando disfarçado enquanto o avião decola. Ja em Curitiba as amigas se reunem, muita opinião, as mais diversas, um desânimo geral, algum incentivo.
Dois meses para se recompor.
– Abriu um bar super diferente, cheio de homem bonito e solteiro – diz uma das meninas enfatizando essa ultima palavra. Nádia ainda sem ânimo pra recomeçar.
Quase meia-noite, uma mensagem no celular. Denis.
O trabalho/destino me leva para dois dias em Curitiba.
“Em estado de dúvida, suspende o juízo” (Pitágoras).
Nádia, a outra. E, pelo menos por enquanto, feliz.
Texto: June Meireles
Foto: Jill Wellington por Pixabay