Verbi gratia

Verbi gratia

Estamos falando de um lugar montanhoso, com grandes pedras, cavernas, cristais e água. Desses lugares com cachoeiras, onde pessoas tatuadas, nos feriados longos, vão aplacar as energias negativas com vastos banhos gelados que golpeiam suas costas com água abundante e pura. Desses lugares repletos de propagandinhas de madeira coladas em uma casa rústica, dando conta de sessões de reike, tarot, massagens, comida natural. Desses locais com cobra coral na trilha, sapinhos coloridos, mosquitos e pernilongos.

Desses lugares em que grupos esotéricos fazem vigília porque são copiosas as notícias sobre luzes que circundam o céu e somem misteriosamente. Um lugar turístico, com sua mística.

Ali, numa casa de família abastada, um pouco separada da pequena vila, uma cadela dá a luz à sua ninhada. Mas um, entre os quatro cachorrinhos, nasce diferente, com um olho na testa. Um único olho astuto na sua testa de filhote. Comporta-se como os irmãos, que naturalmente não o discrimina, muito menos a mãe ou os tutores. O que circula é que o veterinário foi chamado, examinou o bichinho que tem apenas uma má-formação, alguma coisa andou torta na hora da concepção.

Mas o povo, ah, o povo com sua imaginação fértil dá outra direção ao fato. Os rumores correm rápido e chegam aos ouvidos curiosos dos turistas que ali chegavam justamente em busca de novidades transcendentes para suas vidas banais. A notícia é passada assim: esse filhote teria sido concebido numa noite em que uma nave com luzes coloridas e brilhantes foi vista nos campos estrelados do lugar.

Daí em diante o enredo se multiplica. A família teria sentido a ausência do animal, que estava no cio. A cadela só teria voltado dois dias depois, estranhíssima, um tanto agressiva, contrariando sua natureza dócil. Não quis comer nem beber. O veterinário foi chamado, mas estava com uma gripe fortíssima, não veio. A cadela aos poucos se recuperou, voltou o apetite, a alegria e a vida seguiu até constatar-se que esta cadelinha, chamada Torah, estava prenha.

Vieram os cachorrinhos, gordinhos, bonitinhos, incluindo aquele com o olho de cíclope.

A internet, ah, a internet, esse venturoso instrumento contemporâneo que torna qualquer coisa verossímil. Alguém, talvez um adolescente habilidoso e metido a brincalhão, postou a foto do cachorrinho alien, uma montagem mal feita, mas que convencia a quem olhasse com vontade de ver. Porque aquilo que se vê é o que se quer ver.

Ao saber do boca a boca sobre o cachorro alien, a família não teria se incomodado e até se divertido. Mas as pessoas começam a chegar perto da propriedade, que é totalmente murada, o que aumenta a dificuldade e a aura de mistério. Algo se escondia lá dentro. Algo bizarro, algo interessante, algo capaz de mudar o rumo da existência para o bem ou para o mal.

Não demora e surgem as chateações. Se a adolescente cruza o portão da casa murada com sua bicicleta, lá vem turistas fazendo perguntas. Perguntas chatas.

– O cachorrinho tem alguma anomalia além do olho na testa?

– O filhotinho come normalmente?

– O que disse o veterinário?

– A gente poderia vê-lo? – tentam os mais ousados.

Qualquer um que sai da casa é interrogado, amofinado com aquela história. Os empregados também se queixam do assédio. O incômodo é tanto que muda os hábitos da família, que agora evita sair a pé. Quando o fazem, saem de carro com os vidros fechados.

Em um domingo bonito de sol, um drone tentou captar imagens da casa, que tem uma piscina e as pessoas se divertertiam em um churrasco. Os filhotes estão ali, brincando, bem a vista, enquanto o ciclope, não. É o que basta para aumentar a confusão.

Havia nesse lugar uma chácara onde vivia o líder de uma espécie de seita que cultuava a natureza e oferecia alguns serviços ao público, como o realinhamento dos chacras. O que corria é que esse homem estava sem comer há mais de cinco anos, alimentado-se exclusivamente de luz solar. De fato, era magérrimo e muito pálido.

Antes pouco frequentado, o lugar passa a ser procurado com exagero principalmente pelos que vinham de fora. O líder diz nada saber a respeito do cachorrinho alien, mas lembra que, segundo uma antiga profecia, um animal bizarro viria à Terra para anunciar o apocalipse e a renovação de Gaia, o espírito do planeta. Que a localidade em questão tem uma magnética especial, tanto que atrai entidades alienígenas que fazem ali um trabalho de restauração energética do eixo da Terra.

Se espremer, tudo vago. Mas cada um interpreta à sua maneira, tendo em comum a convicção que o cachorrinho era o dito animal sagrado, ali concebido como uma criatura híbrida, com objetivos que mudavam conforme o freguês. Veio para salvar a humanidade. Veio para anunciar o fim dos tempos. Veio para implantar uma nova raça.

Surgiram lendas modernas no meio virtual, as fake news.

Muitos diziam que o cachorrinho uivava à noite funda para fazer contato com os seus genitores, alienígenas, já que a cadela tinha sido apenas o veículo para que ele nascesse. Os de mente mais fantasiosas afirmavam que o cãozinho viraria um monstro enorme, de muitas cabeças e muitos rabos. Montava-se vigília no lado externo da propriedade para tentar ouvir os uivos, que ocorreriam numa hora muito precisa, às três e três da madrugada. Uns afirmavam ouvir, outros não, dependia da frequência energética de cada um – teorizava-se. Acampava-se ali, tomava-se alucinógenos para expandir a consciência e ter contato sutil com as naves.

Alguns exageravam, fazendo o que chamavam de sexo tântrico, ativando a Kundalini, mas que era sexo normal mesmo, motivado pelos instintos mais primários, sob o pretexto de canalizar energias cósmicas. Também acendiam fogueiras e faziam rituais na lua cheia.

O lugar tem poucas ocorrências policiais e a família acha por bem deixar que aquela onda passe, perca a graça, não vale a pena causar mais barulho em torno do caso. Depois, turistas vem e vão. Quanto aos nativos, até comentam, mas sem o mesmo frenesi porque cuidam das suas vidas, tem suas ocupações.

Até que uma mocinha do lugar, gente simples e com referências, é admitida pela família como faxineira. Os patrões a fazem assinar um contrato e, verbalmente, reforçam aquilo que ela assina como um compromisso: nada de comentar sobre o que ver e ouvir na casa.

O patrão é advogado, ela acha por bem respeitar as regras até porque aquele papel, assinado por ela, foi chamado de documento e essa palavra tem impacto entre os mais simples. Quanto às cláusulas, falava-se em sigilo, em multas e, à exceção de alguns termos jurídicos, de difícil compreensão para aquela nativa, estava tudo muito claro. Contrariar o que estava escrito naquele papel, dando com a língua nos dentes, significava responder duras consequências. Embora não estivesse escrito, a cabeça da mocinha, que se chamava Cátia, acrescentava ao contrato a palavra prisão.

Os pais, os amigos, a indagavamm, ela nada revelava.

– O cachorrinho é normal, só o olho que é fora do lugar. Fora isso late, come, tudo igual aos outros – afirmava, muito tranquila.

Mantém-se calada e fiel, até porque ganha um valor ligeiramente acima do salário mínimo, tem a carteira assinada, vai ter férias no tempo certo. Tudo muito direitinho e pouco comum naquela região em que o mundo do trabalho é informal e, em boa parte, injusto.

Os patrões, e todos que ali estão, a tratam bem, são respeitosos com o horário, nenhuma exploração. É um bom e raro emprego, por que haveria de arriscar espalhando coisas que devem ficar entre muros? Sem falar que ela é dessas pessoas que nascem com ética no espírito, são limpas e gostam de sê-lo.

E olha que Cátia teria muito mais a contar, embora, que fique claro, não o fará.

Verbi gratia, que a ninhada foi de cinco e não de quatro. Que dois dos cachorrinhos nasceram, sim, com olho na testa, mas também com dois rabos e oito patas. Que continuam vivos, dormem durante o dia, agitam-se muito na madrugada e vivem separados dos irmãos. Que, quem os vê, se assusta porque são de fato singulares, chegando próximo ao bizarro. Que, olhando assim, parecem mesmo monstrinhos, mas que, ao mesmo tempo, não inspiram qualquer sensação negativa.

Verbi gratia que a casa é frequentada com assiduidade por um senhor de certa idade, chamado Karias, que fala com sotaque estrangeiro e é vegetariano. Trata-se de um hóspede que passa o dia numa espécie de laboratório, que fica na parte subterrânea da casa, com um mundo de coisas que foge ao conhecimento de Cátia, quando ela vai tirar alguma poeira.

Que ela viu escrito, em um papel de cor creme, um currículo desse senhor, Doutor Karias Moore, no qual consta uma longa lista de prêmios, tudo escrito em inglês. Entende a palavra geneticist. Os cachorrinhos esquisitos são monitorados constantemente por ele, que mede, pesa e lhes dá uma ração específica. Ela também viu eletrodos.

Cátia tem uma mente simples, mas não é burra. Ao seu modo, sabe que se trata de um experimento, embora não tenha ideia para que serve ou onde se pretenda chegar. Todo o conjunto de fatos e suas respectivas verdades não interessa a ela, que sai daquele largo portão com a mesma alma leve e sana com a qual entra para realizar com primazia o asseio e a ordem.

Também não se incomoda quando é abordada nas imediações com perguntas insistentes, as quais responde com um sorriso tranquilo. Não se impacienta porque não se sente pressionada e não deixa escapar uma palavra comprometedora, nada.

Se diverte em pensar, com a sagacidade da sua mente cristalina como as cachoeiras do entorno, o quão iludidas estão aquelas pessoas, quando se concentram em buscar, no céu distante, respostas que estão tão próximas dos seus umbigos.

Escrito por June Meireles

Foto de Andreas Schlereth

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